Goodnight Mommy: Sobre as trevas austríacas, o trauma do nascimento e Gottfried Helnwein

Lançado em 2014, filme de terror austríaco traz à tona o aspecto obscuro da cultura nacional e faz conexão com a obra de Gottfried Helnwein

Dirigido por Severin Fiala e Veronika Franz, o filme Ich seh ich seh, traduzido para o inglês como "Goodnight Mommy" (Boa noite, mamãe), conta a história de irmãos gêmeos que passam as férias com sua mãe, em uma casa na parte rural da Áustria.

Ao visitá-la, os irmãos Lukas e Elias Schwarz descobrem que Mama (Susanne Wuest) não só tem o rosto coberto por bandagens, por conta de uma recente cirurgia, como também parece se comportar de maneira diferente. Para punir uma das crianças, Mama passa a ignorar o filho e repreende ambos com castigos que se tornam cada vez mais agressivos e assustadores quando aplicados pela mulher "sem face"*.

Goodnight Mommy não só traz à memória a estética de La Piel Que Habito (2011), de Pedro Almodóvar, como também nos recorda a narrativa de Funny Games (2007) e a premissa de Mama (2013). Por outro lado, a obra também aposta no uso das bandagens como forma de cobrir um rosto que deveria trazer conforto e que, no entanto, acaba se tornando um paradoxo associado ao monstruoso.

O tema, no entanto, já vem sendo abordado por outros artistas austríacos. Um dos principais nomes da contemporaneidade, Gottfried Helnwein é conhecido justamente pelo uso de bandagens em suas fotografias e pinturas. Sua carreira começou no fim dos anos 1960, com performances em que o vienense se cortava e se enrolava em bandagens, assim como os Acionistas Vienenses também haviam feito. Mais tarde, Helnwein se focou no tema da criança: da sua inocência à sua fragilidade diante das trevas do mundo adulto.

Os primeiros desenhos de Helnwein, como os da série Mother's Day (1993), são bem mais diretos e viscerais ao abordar o tema do abuso infantil. Enquanto o adulto segue como a representação do perpetrador, as crianças de Helnwein são dotadas de uma aura que parece seguir o conceito da "Criança Divina", proposto pelo psicanalista suíço Carl G. Jung.

Ameaçados, os irmãos planejam vingança contra a mãe que, afinal, já nem é mais reconhecida. A figura e o comportamento da mulher monstruosa, com a qual compartilham a casa (o lar seguro), não é compatível com a imagem mental que as crianças mantém de sua mãe. O choque é principalmente causado por uma sequência de ações que repelem as crianças, emulando uma espécie de "processo de separação" - que é algo pelo qual todos passamos, desde que nascemos. Parte da teoria de Sigmund Freud, o conceito aparece também no livro The Trauma of Birth (1924), de Otto Rank.

Nessa publicação, o psicanalista austríaco indica que todos os seres humanos já nascem traumatizados, uma vez que o nascimento é, em si, inevitável e uma violenta separação de nossas mães. Nossas primeiras impressões são mediadas por nossas mães, assim como seus corpos são nosso primeiro lar. Quando retirados de nossa harmonia primordial, o ambiente uterino, passamos pela separação que nos gera a ansiedade a ser reverberada ao longo de nossas vidas, em constantes e novos processos de separação. Do nascimento à amamentação; do primeiro dia na escola ao início da faculdade e a mudança para outra cidade; da distância que nos separa de entes queridos à sua morte.

Quando Lukas e Elias decidem que sua mãe é realmente uma ameaça, os gêmeos passam a se organizar de maneira quase militar, trocando turnos de vigilância e chegam até a confeccionar suas próprias armas. Para torturar aquela que acreditam ser a "doppelganger" de sua mãe, os irmãos vestem máscaras, como se a imagem monstruosa dos acessórios lhe emprestassem a intimidação e a força necessárias para o ato - assim como se segue a ideia de persona (máscara, em Latim) e seu uso no teatro grego.

O fato do abuso infantil ser uma constante na arte austríaca não é uma coincidência. Vale a pena lembrar que o Caso Fritzl aconteceu, justamente, na Áustria. Em abril de 2008, Elizabeth Fritzl denunciou seu pai à polícia de Amstetten, acusando-o de tê-la mantido em cativeiro por 24 anos no porão de sua casa. Josef Fritzl (foto) a abusou sexualmente e a agrediu fisicalmente por todos aqueles anos, inclusive provocando o nascimento de sete crianças, sendo que quatro delas também foram mantidas em cativeiro (apesar de uma ter morrido dias após o nascimento), enquanto as três outras foram cuidadas por Josef e sua esposa Rosemarie.

Gottfried Helnwein chegou a se manifestar sobre o caso, já que sua obra era comumente associada a esses acontecimentos, por conta de sua estética sombria:

"A violência contra os fracos e indefesos é algo tão antigo quanto a raça humana. Por todo o mundo, há provavelmente mais escravos agora do que havia no tempo em que a escravidão era considerada legal. Desde que a Áustria, de repente, chamou a atenção do mundo outra vez, por conta do Caso Fritzl, a mídia internacional tem especulado sobre esse 'lado obscuro' do país, e alguns rapidamente se lembravam que esse aspecto tem sido algo abordado pela arte austríaca há muito tempo. Tanto na literatura quanto nas artes visuais. E foram as minhas pinturas, acima de tudo, que invadiram a consciência das pessoas. O tipo de imagem que a mídia internacional usa para ilustrar a Áustria, quando eles a notam, é desagradável às vezes. Alguns anos atrás, quando eu estava nos Estados Unidos e minha nacionalidade era trazida à tona, as pessoas imediatamente diriam: 'Ah, Waldheim!', e depois 'Ah, Haider!', e então era 'Fritzl!'. Se não fosse por Arnold Schwarzenegger e Mozart, a Áustria estaria ferrada."

Em entrevista para a Vanity Fair alemã, Helnwein argumenta que, na verdade, é possível afirmar que a Áustria tem "uma tradição de trevas". Ele menciona exemplos como Kafka e Sacher-Masoch, Thomas Benhard e Hermann Nitsch como uma prova desse clima obscuro que paira sobre seu país natal. O pintor também diz que grupos com o Acionismo Vienense não poderia existir em lugares como "Estocolmo ou em uma cidade com palmeiras. Mesmo se comparadas a Alemanha, as coisas na Áustria são ainda mais absurdas". Para se explicar melhor, Helnwein diz que o caso do terrorista austríaco Franz Fuchs: ao enviar uma carta-bomba ao ex-prefeito de Viena, Helmut Zilk, ele teria matado quatro pessoas e feito o político perder parte de sua mão. "Quando [Fuchs] tentou se matar com uma bomba de tubo, ele acabou perdendo as duas mãos. No tribunal, ele ficava movendo seus membros amputados e gritava slogans nazistas incessantemente. Isso é muito austríaco", diz o artista.

Outras fontes também chegaram a fazer a conexão do filme com a obra de Gottfried Helnwein, que segue até hoje influenciando outros artistas, incluindo Dawid Bowie em seu clipe para a música Lazarus.

* Nota: O filme não é exatamente sobre abuso infantil, mas antes do final, esse parece ser o tema. Não quis incluir isso no texto para não causar spoiler! :)