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Da quebrada ao palco

Passei um dia com a Linn da Quebrada e foi isso que eu aprendi sobre resistência artística.

“Bicha estranha, louca, preta, da favela” a primeira linha de uma das principais músicas da Linn da Quebrada já dá uma ideia de qual é a sua luta. Linn vive uma construção contínua. Para ela, o verbo não é ser e sim estar. Está nesse momento como cantora e artista.

Sua música e arte são sobre ser negra e transexual no país que mais mata pessoas trans no mundo e nas quebradas onde negros morrem em números de guerra. Segundo ela, a violência não é só física. Você pode não puxar o gatilho, mas com palavras, insultos e gestos também agride. E por isso, a própria existência de Linn é puramente resistência.

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“A luta começou quando eu descobri que meu corpo era proibido pra mim mesma.”

A música acima conta a história de como ela se descobriu Linn da Quebrada. Desde seu passado religioso como testemunha de Jeová, até ser expulsa e desassociada da igreja, ou seja, proibida de falar com as pessoas que frequentavam a igreja e que mantêm a prática da religião. Tudo isso por ousar ser quem é e ser dona do próprio corpo.

Indo até sua casa na Zona Leste de São Paulo, uma coisa não saía da minha cabeça: “QUEM EU PENSO QUE SOU PARA FALAR QUEM É LINN DA QUEBRADA?" Justo eu, um homem, hétero, branco, cisgênero que quando peguei esse trabalho para produzir sabia que seria um verdadeiro choque de realidade. Eu simbolizo toda a perseguição e perigo que uma pessoa trans vive. Por isso, Linn sobre Linn:

“Eu sou um experimento, todo mundo tem uma ideia preconcebida do que é se relacionar, o que é amor e por isso estamos na briga pelo imaginário social, mostrando que esses corpos existem e que temos liberdade de viver nossas próprias escolhas”. Em sua casa Linn me explica, “Eu não canto pra ser cantora, eu canto pra ser ouvida.”

De sua casa, saímos em direção a um show que Linn faria no centro de São Paulo onde apresentaria seu novo clipe feito em collab com ABSOLUT e As Bahias e a Cozinha Mineira. Conversando sobre esse momento, Linn contou qual foi seu primeiro passo no mundo da música: “Eu nunca pretendi trabalhar com música. A música acabou acontecendo na minha vida. Eu escrevia bastante e comecei a pensar em música pelo FUNK. Pelo que o FUNK representava. Essa coisa de criar desejo, produzir uma vontade dentro de você. Assim como músicas de amor que criam essa vontade e dizem como você deve amar. Começou com uma brincadeira pensando nas músicas que EU gostaria de ouvir. Sem necessariamente apontar a música para os outros. Apontando também pra mim mesma, sobre meus próprios desejos. E aí eu comecei a descobrir quantas pessoas também se sentiam assim também. De novo, um experimento.”

Durante todo nosso trajeto, um tema constante nesse papo foi o conceito de experimento social questionando a nossa ideia de NORMAL. A construção social que todos vivemos. Não apenas sobre gostos, mas também sobre corpos e representações. “Os sentimentos são construções sociais. Essas músicas dizem como temos que amar." Linn fala sobre All you need is love - The Beatles, "Essa é uma construção social que está muito mais próxima de uns corpos do que de outros. E se eu for falar dos meus afetos, da forma como EU AMO, vai ser representado por uma forma diferente. E é isso que eu falo com representatividade. Eu não posso falar por todas essas pessoas da caixinha do LGBTQ. Essas pessoas não vivem o amor da mesma forma. Elas nem fodem da mesma forma.”

“A minha existência é natural. Eu sinto ela. Ela foi DESNATURALIZADA por anos e anos de construção social.”

Como transexual, Linn é constantemente bombardeada e questionada sobre sua própria feminilidade e passabilidade. “A mulher (em nossa sociedade) é uma criação voltada para o masculino, para o homem. Então ela não tem o direito de escolher o próprio corpo porque o que se espera dela é que ela exista para o homem. Se uma mulher cultiva qualidades viris, isso já não é natural a ela. Se ela é forte, não é natural.” Aliás, como transexual, Linn é constantemente bombardeada de todo lado. “Travesti não tem medo. Se eu tiver medo eu não saio de casa.”

Segundo um levantamento do Grupo Gay da Bahia, a expectativa de vida de travestis e transexuais no Brasil é de 35 anos, menos da metade da média nacional que é 75 anos. “É permitida a violência contra uma travesti. É permitido a violência contra um morador de rua. Nós não nos comovemos quando vemos esse tipo de violência acontecendo com esses corpos.” E isso se reflete no mundo da arte também. Num espaço onde gays também já estão conquistando um lugar de destaque, a música de Linn é agressiva porque é uma resposta. “As pessoas nos matam quando não querem que nossa arte esteja nos museus, que nossa música não tenha alcance, que nossos corpos não existam."

"Eu tenho que deixar de ser eu para que OS OUTROS se sintam confortáveis.”

O evento que Linn se apresentou naquela mesma noite foi a festa de celebração do projeto Absolut Art Resistance. Desde 1980 a marca apoia artistas marginalizados pela sociedade (começando com ninguém menos que Andy Warhol). Os temas variaram muito nos últimos anos, partindo de questionamentos sobre racismo, direitos das mulheres e até a própria discussão do que é arte -- um debate mais vivo do que nunca na sociedade brasileira. Keith Haring, um dos principais artistas modernos no mundo, sofria preconceito por ser HIV positivo e usou sua arte para falar também das formas de prevenção, criando até uma fundação. Até hoje seus desenhos coloridos simbolizam a quebra de preconceitos.

A versão 2017 desse projeto não poderia ter outra causa como foco. A música do clipe protagonizado por Linn possui uma letra que exige reflexão. Versos como “Estou procurando / Estou tentando entender / O que é que tem em mim que tanto incomoda você?” e “Olha aqui doutor que genial / Minha identidade? Nada a ver com genital” são um apanhado de outras letras de outras músicas de Linn, escolhidas a dedo para protagonizarem a campanha. A música foi produzida especialmente para o projeto e conta com os vocais trans da banda paulistana “As Bahias e a Cozinha Mineira”. Além do clipe e da festa de lançamento, a marca também deu um presente para a cidade de São Paulo. Assinada por Patrick Rigon e Renan Santos, a obra é um marco sobre resistência da cultura trans, com frases, rostos e até uma menção ao projeto do artista Ariel Nobre “Preciso dizer que te amo”.


Durante todo o evento, o clima era de festa e celebração total. “ESTAMOS VIVAS E ESSE MOMENTO É NOSSO” falava Linn em cima do palco. Da plateia, eu pude entender algo que ela me disse enquanto conversávamos de tarde: “Linn da Quebrada não sou apenas eu, é também minha banda e quem mais estiver comigo ali em cima.” Eu fiquei totalmente rendido durante sua apresentação, com mil questionamentos e muito maravilhado por tudo o que aprendi e conversei com ela. Eu realmente nunca conseguiria entender como é ser um ato político por simplesmente sair de casa. Nem como é ter que brigar pelo direito de ser dono do meu próprio corpo. Mas por uma tarde eu convivi, ouvi e aprendi com isso.

Linn me fez perceber que a arte e o artista são ferramentas realmente muito poderosas. Fazem com que as pessoas se sensibilizem com causas e entendam, lutas, resistências e situações que não são parte da vida delas. O importante é tentar fazer com que sejam. E isto é progresso.

Com vocês, ABSOLUTAS.

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