Antes de morrer, mulher foi recusada 123 vezes em UTIs de São Paulo

    Por 37 dias, a costureira aposentada Maria Lucia Machado, 62, aguardou um leito de UTI. Juíza mandou que ela fosse internada em 1º de dezembro. Tarde demais: a aposentada morrera na véspera.

    Por 37 dias, a costureira aposentada Maria Lucia Machado, 62, aguardou um leito de UTI em hospitais públicos em São Paulo.

    Internada num hospital da Vila Nhocuné (zona leste de SP) que não dispõe de leitos de terapia intensiva, Maria Lucia era cardíaca, tinha sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) e apresentava um quadro de insuficiência respiratória aguda.

    Frustrada a tentativa de obter o leito de que precisava na rede, ela procurou a Justiça. A decisão da juíza Alexandra Fuchs de Araújo veio em 1.º de dezembro. Mas Maria Lucia havia morrido na véspera, em 30 de novembro.

    Documentos obtidos pelo BuzzFeed Brasil mostram que, entre 25 de outubro e 7 de novembro, Maria Lucia recebeu 123 negativas de hospitais estaduais e municipais. São 16 páginas de negativas.

    "Eu não entendi qual essa fila. Fila para transplante, para cirurgia, tudo bem. Mas fila para UTI? Eu estou sem saber o que pensar. Eu sei que não vai trazer a minha mãe de volta, mas eu creio que se tivessem conseguido a UTI antes, nesse prazo em que eu fui atrás, ela teria se recuperado, sim", disse Priscila Machado Sambrana, filha única da aposentada.

    Em média, 50 pessoas aguardam na fila por uma vaga de UTI na capital. Às 18h30 da quinta-feira (15), eram 51 pacientes.

    Após piorar, paciente bateu em vão à porta de hospitais e da Justiça.

    No dia 21 de outubro, Priscila levou a mãe para a emergência do hospital Alexandre Zaio, na Vila Nhocuné, na zona leste de São Paulo.

    Ela já havia sofrido um infarto e sido tratada no Incor meses antes. As complicações começaram no dia 25, quando se verificou a necessidade de internação em UTI, tipo de leito do qual o hospital Alexandre Zaio não dispõe.

    Com isso, o pedido de vaga seguiu para a Central de Regulação de Urgência e Emergência, que coordena todas as vagas disponíveis na cidade. Entre 25 de outubro e 7 de novembro, a vaga de UTI que ela pediu foi negada as 123 vezes.

    Logo depois disso, quando ainda aguardava vaga na UTI, ela teve uma ligeira melhora e, assim, perdeu seu lugar na fila.

    Quando piorou, teve de recomeçar a espera da estaca zero no sistema de regulação de vagas hospitalares. Sua primeira numeração era SS1228714-16 e, a segunda, SS1244352-16.

    A solução encontrada por Priscila foi acionar a Defensoria Pública, que ingressou com um pedido na Justiça para uma vaga para sua mãe.

    A primeira decisão da juíza apenas mandou que a prefeitura prestasse esclarecimentos com urgência de 48 horas e não deu a vaga para Maria Lucia, diante do "risco de gerar dano a terceiro por eventual alteração de fila".

    O município deveria se manifestar depois de ser notificado, mas não isso nunca aconteceu.

    A defensora pública Daniela Skoromov fez novo pedido e a juíza então decidiu pela vaga. Tarde demais. A decisão da magistrada em favor da costureira foi assinada um dia depois da morte.

    "Isso mostra como o Judiciário é inadequado para esse tipo de caso. Como num caso absurdamente urgente desses não existe um trâmite absolutamente urgente?", questiona Daniela Skromov.

    O caso da costureira aposentada é o terceiro sobre vagas de UTI que Daniela Skromov defendeu desde agosto, quando assumiu a defesa dos cidadãos em casos de saúde contra o município e o estado. Nos outros dois casos, os pacientes também morreram. Ao todo, são sete defensores em São Paulo que se dedicam a este tipo de demanda.

    Mãe de Priscila recebeu 123 recusas por vaga em UTI de SP. Quando Justiça decidiu a seu favor, paciente já tinha mo… https://t.co/416h7FZO1T

    O que diz o poder público:

    Coordenadora da Central de Regulação de Urgência e Emergência, Elaine Gianotti afirmou ao Buzzfeed Brasil que o número de leitos de UTI em São Paulo é insuficiente para a demanda da cidade.

    Segundo a Organização Mundial da Saúde, o ideal seria que uma cidade destinasse 10% a 15% de seus leitos para a alta complexidade, mas, no caso de uma capital como São Paulo, essa estimativa deveria chegar a 20%. Na capital, os leitos de UTI representam somente 12% do total.

    "Precisaríamos de mais mil leitos. E muita gente entra na Justiça. Eu não chamaria de fila, existem pessoas esperando, cada qual com o seu quadro clínico", diz a coordenadora.

    Elaine, no entanto, afirma que é angustiante a tentativa frustrada de obter uma vaga. Para ela, não haveria problema se a espera não superasse 12 ou 24 horas.

    Segundo a coordenadora, são dois os critérios para a disponibilização de vagas: gravidade do quadro clínico e a estrutura do hospital onde está o paciente.

    No caso de Maria Lucia, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que "durante toda a sua internação, ela recebeu os mesmos cuidados intensivos que receberia numa unidade de terapia intensiva, inclusive com acompanhamento multiprofissional, como ocorre para todos os pacientes que estão no setor de emergência".

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