A marcha lenta de duas elefantes quarentonas para o 1º santuário do Brasil

    Após décadas de trabalho escravo em circos, Maia e Guida viajaram 48 horas, em pé, do sul de Minas ao coração do Mato Grosso. O BuzzFeed Brasil acompanhou a saga.

    Tão logo põe a cabeça para dentro do contêiner e dá alguns passos, Maia, 44 anos, vacila. Ela desconfia do barulho de metal. A inquietação é eco de décadas vivendo acorrentada como escrava de circos pelo interior do Brasil. Ela sai de ré, devagarzinho. Ainda levará um tempo para que, calmamente, seja convencida a voltar e a aceitar, pela última vez, que seus pés sejam presos a uma corrente.

    Não há pressa. Todos ali sabem que, na flor da meia-idade, Maia tem um temperamento forte e é elétrica como uma “criança arteira”, nas palavras de um homem que conviveu com a paquiderme de 3.600 quilos nos últimos quatro anos. E, pela primeira vez, é ela quem está ditando o ritmo do seu destino.

    A poucos metros dali, Guida, 42 anos, aguardava. Mais dócil que Maia, ela já aceitara o contêiner e se acomodava no cubículo no qual passaria os próximos três dias sem poder se deitar. Poucas horas depois, braços mecânicos de dois guindastes estariam erguendo sua caixa de metal e, junto, suspendendo seu corpo de 3.300 quilos até a carroceria de um caminhão.

    Assim teve início, na manhã do último domingo (9), a viagem extraordinária de duas gigantes asiáticas rumo ao primeiro santuário para elefantes da América do Sul.

    Dos cerca de 50 elefantes em cativeiro no Brasil, divididos entre zoos e circos, acredita-se que a maioria seja da espécie asiática. A preferência dá-se por razões de manejo. Os elefantes asiáticos, em comparação aos primos africanos, são menores e mais dóceis.

    Provavelmente originárias da Tailândia, Maia e Guida guardam um passado obscuro. Não existem registros de importação das duas ou mesmo de seu histórico de saúde. Acredita-se, no entanto, que elas tenham nascido livres e sido capturadas ainda filhotes. Nesse caso, é provável que tenham sido submetidas a um processo chamado de “phajaam”, ou “quebra de espírito”, em que jovens elefantes são confinados em minúsculos cercados de madeira, torturados e impedidos de se alimentar ou dormir, para que se tornem “obedientes” a adestradores. Em algum momento depois disso, Maia e Guida chegaram ao Brasil, onde passaram pelos circos Garcia e Internacional Portugal se apresentando no picadeiro. As décadas sob os holofotes só findaram em 2010, quando foram apreendidas por ordem da Justiça.

    Porém, na falta de uma destinação apropriada, Guida e Maia acabaram acorrentadas num cercadinho de cerca de 1.500 metros em um sítio no município de Paraguaçu, no sul de Minas, de propriedade do advogado do Circo Portugal, Giuliano Vettori. Não houve maus tratos nos seis anos que elas passaram ali, segundo uma investigação do Ministério Público, mas a situação estava longe de ser a ideal.

    O lugar não era apropriado para a guarda de dois animais dessa estrutura e Maia, quando suas correntes estavam frouxas, conseguia escapar e fazer pequenos passeios pela propriedade. O tamanho das correntes só permitia que as duas se tocassem com a pontinha das trombas, após episódios de agressão de Maia contra Guida.

    Uma solução definitiva, então, foi acertada no primeiro semestre deste ano: Maia e Guida seriam transferidas para uma área de 1.140 hectares adquirida pela organização não-governamental Santuário de Elefantes Brasil (SEB), no município mato-grossense de Chapada dos Guimarães, em meio ao cerrado brasileiro. As duas seriam as primeiras elefantes a fixar residência ali, inaugurando um espaço que se destina a dar uma aposentadoria digna a paquidermes que padecem em circos e zoológicos da América do Sul.

    A distância entre Paraguaçu e Chapada dos Guimarães é de 1.600 km. A equipe que acompanha Maia e Guida nessa jornada, que passará por quatro Estados brasileiros (Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Mato Grosso), é supervisionada pelo americano Scott Blais. Ele é presidente da Global Sanctuary for Elephants, ONG criada com o intuito de fomentar a construção de santuários de elefantes pelo mundo, começando pelo Brasil, e reunir doações para tal. O comboio é composto de 6 veículos e 15 pessoas.

    O ritmo da viagem será todo ditado pelo bem-estar de Maia e Guida. Os contêineres das duas só são fechados e içados depois que Scott conclui que elas se acostumaram ao invólucro. Na delicada e demorada operação em que dois guindastes erguem as caixas de metal uma a uma para posicioná-las na carroceria dos caminhões, ele constantemente vai às janelas para acalmar e conversar com as meninas.

    O contêiner de Guida é içado às 10h30 e leva pouco mais de 15 minutos para ser posicionado. O de Maia, devido à presença de alguns postes de luz e à inclinação do terreno, leva mais de uma hora e termina somente 12h55. Depois, é hora de assegurar que os contêineres ficarão bem presos, por cabos, à carroceria. Somente às 15h conseguiremos atravessar a porteira do sítio de Paraguaçu. Na estradinha rural que liga o sítio à BR-222, os vizinhos se juntam nas porteiras de seus sítios para assistirem à partida. Eles acenam, felizes.

    É um domingo de sol a pino, mas Scott explica que o calor e a luz lancinantes são mais inconvenientes para os bípedes da equipe do que para as elefantas. A brisa está fresca e as caixas garantem sombra e tem chão revestido de madeira, garantindo conforto térmico. Na estrada, o vento também ajudará.

    Para encarar o percurso, nenhuma das duas precisou ser dopada. Como Maia e Guida trabalharam por muitos anos em um circo itinerante, diz a veterinária Laura Paolillo, elas estão acostumadas a viajar.

    Dentro dos contêineres, as elefantes estão presas por correntes e câmeras foram posicionadas de modo que Scott e a consultora Lauren Holman, que estão nas cabines dos caminhões junto aos motoristas, possam acompanhar em tempo real o que acontece lá atrás. Os contêineres são fortes e só seriam desestabilizados, explica Scott, se Maia e Guida se deitassem. Por isso mesmo, a largura das caixas não permite isso.

    Será uma jornada de pé, algo desconfortável, mas que não impedirá que as duas durmam, já que elefantes passam, em média, somente duas horas por dia deitados e conseguem cochilar mesmo sem estar nessa posição.

    Avançamos. Estamos perto da cidade mineira de Muzambinho. Morros baixos, plantações, pastos e árvores. A paisagem mudará drasticamente.

    No fim da tarde, passaremos por situações que se repetirão nos próximos dias. Parando em um posto para encher os tanques dos caminhões e das caminhonetes, assim como alimentar e dar água às elefantes, algumas pessoas se aproximam, curiosas.

    Scott, em seu português claudicante, é gentil ao explicar para as pessoas o que está acontecendo, mas firme ao impedir que cheguem muito perto das portinholas por onde as elefantes são alimentadas. Maia e Guida parecem tranquilas, mas seu comportamento ainda deve ser considerado imprevisível.

    Cuidar de elefantes custa caro. O SEB estima que, nos primeiros meses, o custo mensal de manutenção de Guida e Maia girará em torno de R$ 20 mil, cada uma.

    O destino das elefantes é uma antiga fazenda de gado de 1.140 hectares (algo como 1.500 campos de futebol) que foi comprada pelo SEB por R$ 3,2 milhões. O pagamento vai ser feito ao longo de seis anos e está sendo coberto por doações do Brasil e do exterior.

    No santuário, estarão esperando por Guida e Maia um galpão (o centro médico do SEB) e uma área de 0,5 hectare (5.000 m²), que já nas próximas semanas deverá ser ampliado para 20 hectares. Somente para essas construções foram gastos US$ 450 mil (R$ 1,44 milhão).

    Não ficará por aí. A intenção é que o espaço que as elefantes possam circular seja o maior possível. Isso depende, no entanto, da construção de cercas feitas com um material caríssimo: antigas tubulações de extração de petróleo — as únicas capazes de aguentar a investida de um elefante. Um lote de 140 tubos custa R$ 75 mil, fora o transporte até o SEB, para o qual deve ser desembolsado mais R$ 10 mil.

    Os doadores que quiserem contribuir para o santuário, por sua vez, terão que entender uma particularidade: ele não será aberto à visitação pública. Em vez disso, câmeras serão instaladas por toda a propriedade em locais-chave e suas imagens transmitidas ao vivo pela internet. Scott sabe que esta decisão pode afastar potenciais doadores, mas explica que o objetivo do santuário é exatamente resguardar os elefantes dos assédios dos quais eles foram vítimas durante tantos anos.

    Segunda-feira, cinco horas da manhã, e já estão todos de pé para continuar a viagem. Scott diz que Maia e Guida passaram a madrugada acordadas e só relaxaram na última hora e meia.

    O único percalço enfrentado por elas em seu segundo dia de estrada acontece no final da manhã. Pelo monitor que leva na cabine do caminhão, Scott observa que o vento das janelas dianteiras da caixa de metal passou a incomodar as elefantes. As duas começam a lacrimejar e a coçar os olhos. Fazemos uma rápida parada perto de Itumbiara (GO), e o problema é solucionado em pouco mais de dez minutos, encaixando placas de metal nas aberturas.

    Os contratempos de segunda serão exclusividade dos humanos. Perto das 13h, o motorhome do voluntário Eduardo Cardoso, que também levava a veterinária Laura, sofre um piripaque e tem de ser levado a uma mecânica. A caminhonete em que estou se separa do comboio para dar assistência. Maia e Guida seguem em seus caminhões, com Scott, Lauren e o restante da equipe.

    Depois de três horas enganchado na oficina, meu grupo volta à estrada… As paisagens vão se transformando pela janela à medida em que avançamos pelo Centro-Oeste, com muitos silos, terra limpa devido ao período de entressafras e plantações de eucalipto. Por volta das 18h, abrimos as janelas e comemoramos a brisa fresca de 32ºC, um alívio para um dia que chegou a marcar 46ºC.

    Só vamos nos reunir novamente ao comboio à noite, perto da cidade de Mineiros (GO). O grupo decide pernoitar em um hotel em Alto Araguaia, já no Mato Grosso. Maia e Guida parecem bem.

    Chegou o dia em que alcançaremos nosso destino, e todos acordam animados. Às 5h45, já estamos novamente rodando. Tudo corre bem até nos aproximarmos da região de Rondonópolis, segunda maior cidade de Mato Grosso.

    Rota de dezenas de milhares de toneladas de soja produzida no norte do Estado e que são exportadas por meio do porto de Paranaguá (PR), as estradas da região vivem cheias de carretas.

    Por volta das 8h, o caminhão de Guida tenta ultrapassar uma carreta, cujo motorista força a direção para bloquear a passagem. O motorista de Guida é obrigado a frear bruscamente no acostamento do lado contrário da pista.

    A Polícia Rodoviária Federal, que nos acompanhava desde Minas Gerais, entra em ação, para o motorista imprudente e bloqueia a estrada até que nosso comboio volte a se organizar.

    “Se o senhor tombasse aquele elefante, ia preso agora”, ouvimos o agente Paulo Demarchi dizer ao motorista, enquanto apreendia seus documentos.

    Tivemos sorte. Se houvesse algum desnível brusco entre a estrada e o acostamento, ou se o acostamento fosse muito pequeno, o caminhão de Guida provavelmente teria tombado.

    Os policiais disseram que episódios do tipo são mais comuns do que deveriam. Alguns caminhoneiros simplesmente fazem este tipo de manobra perigosa porque não querem ser ultrapassados.

    Depois do susto, nosso comboio seguirá em fila indiana, sem se separar, e a PRF não permitirá mais que ele seja ultrapassado. O motorista da carreta é multado por forçar a passagem entre veículos e por dirigir sem atenção e sem os cuidados indispensáveis à segurança. Seu direito de dirigir também é suspenso.

    O percalço não abala a equipe. Lauren, que estava na cabine do caminhão que levava Guida, garante que a elefante está tranquila e que não demonstrou ter sentido o episódio. O susto foi mais nosso do que dela.

    Quando chegamos ao distrito de Rio da Casca, a uns 10 km do santuário, somos recebidos por dezenas de pessoas, incluindo o prefeito do município de Chapada dos Guimarães e jornalistas.

    Às 15h, exatamente 48 horas depois de deixarmos o sítio no sul de Minas, nosso comboio cruza a porteira do santuário.

    Uma promessa de vida digna aguarda Maia e Guida no SEB, mas não seria melhor devolver os elefantes que estão nos santuários à natureza?

    De acordo com especialistas, a resposta é não.

    Muitos elefantes resgatados, após anos ou décadas de cativeiro, não apresentam condições físicas para sobreviver na natureza.

    Além disso, retirar algum membro de um santuário e devolvê-lo à natureza tende a criar um clima de instabilidade no resto do grupo que fica para trás, segundo Scott.

    Por fim, como esses animais vivem em manadas, não adiantaria colocá-los sozinhos na natureza.

    “O cativeiro não é a resposta para salvar a espécie, mas a natureza também não é a resposta para os elefantes que já estiveram em cativeiro e estão em santuários.”

    Maia e Guida não ficarão sozinhas no SEB por muito tempo.

    Em breve, Ramba, uma elefante indiana de cerca de 50 anos que foi apreendida de um circo no Chile, deverá chegar.

    O SEB também observa com preocupação as condições de outras elefantes no Brasil, como Carla, que vive confinada no zoológico do Rio, e Lady, que está em João Pessoa e apresenta uma infecção nas patas própria de elefantes em cativeiro.

    Isso não significa, no entanto, que elas serão as próximas moradoras do local, porque cada transferência é uma operação negociada durante muito tempo.

    Joyce Poole, codiretora da ElephantVoices, organização científica parceira do SEB, explicou por que é possível que elefantes de diferentes origens e histórias possam se relacionar em santuários mesmo depois de anos em isolamento.

    “Os elefantes são muito parecidos com as pessoas — eles têm laços muito fortes na natureza com membros da sua família, como mãe, irmãos, filhos, primos, primos de segundo grau etc. Mas elefantes também fazem amizade fora da sua família e podem formar laços bem fortes assim.”

    Não basta colocar os elefantes em um cercadinho e esperar que eles se deem bem, no entanto. É preciso fornecer um espaço grande o suficiente para evitar eventuais conflitos por causa do temperamento: “No cativeiro, os elefantes precisam se contentar com quem são colocados. Às vezes eles fazem amigos, às vezes inimigos, isso tem a ver com a personalidade de cada um.”

    A operação de descarregamento de Maia e Guida começa às 16h40 e só termina pouco depois das 19h. Maia, como foi a mais inquieta da dupla durante o percurso, é a primeira.

    Quando a porta do seu contêiner se abre, ela sai devagarzinho, estimulada por palavras carinhosas de Scott. Então começa a investigação do recinto de cerca de 60 m² no qual passará a noite, tocando com a tromba todos os cantinhos das grades, comendo comida fresca e rolando num montinho de terra.

    Depois, é a vez de Guida, que será descarregada em um espaço contíguo ao de Maia, mas separado por um portão. Maia aguarda ansiosamente do outro lado da grade. Assim que a amiga sai do container, as duas estendem suas trombas e se cumprimentam. Nesta madrugada, as duas ainda permanecerão separadas.

    Na manhã seguinte, Maia e Guida parecem tranquilas, segundo Scott. Quando a divisória entre as duas finalmente se abre, Guida é a primeira a tomar a iniciativa. Ela chega perto, com cuidado, da companheira. As duas interagem bem. Tocam-se com as trombas, se cheiram.

    Passam-se mais algumas horas, e Scott avalia que elas estão prontas para irem para a área externa. Quando o portão se abre, todos prendem a respiração. Cinco minutos se passam. Nada.

    Scott explica que varia muito o tempo em que cada elefante resgatado sente-se à vontade para explorar o espaço aberto. Alguns levam horas, outros dias, e ele conhece um caso em que uma elefante levou semanas.

    Os casos mais drásticos geralmente ocorrem com animais provenientes de zoos. “Muitas vezes nos perguntam: circo ou zoo, qual é o pior? Os dois são horríveis, mas no circo os elefantes foram mais expostos ao mundo, eles viram mais coisas, tiveram que usar mais o cérebro em diferentes situações. Já a estabilidade da vida no zoo, o isolamento, o dano psicológico faz com que os elefantes [que chegam aos santuários] tenham mais dificuldades.”

    Principalmente animais de zoo, diz, costumam ter medo diante de uma imensidão que até então lhes era inconcebível.

    Novamente, é Guida quem toma a iniciativa. Ela sai devagarzinho, olhando tudo com atenção. Assim que atinge a área verde, começa a explorá-la com a tromba. Minutos depois, Maia dá as caras, à procura de Guida. Quando sai, vai direto ao encontro da companheira. De costas para nós, elas parecem entrelaçar suas trombas e se entreolhar. Maia depois olha para nós, encontra um tanque de água, bebe com satisfação.

    Em poucos minutos, Maia volta para a companhia de Guida. As duas seguem explorando o recinto até saírem de nosso campo de visão. Parecem finalmente estar em paz.

    Veja também:

    A longa viagem de Maia e Guida rumo à liberdade

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