• newsbr badge

A morte de uma fanfic de 4 anos que comoveu — e enganou — a internet

O grupo LDRV no Facebook explodiu em manifestações de luto por causa da notícia da morte de Gabriel Yashi, 22. Teria sido uma bonita cena de comoção ao redor de uma tragédia. Só que Gabriel Yashi nunca existiu.

Quando Gabriel Yashi morreu com 22 anos, em 15 de abril, muitos dos 22 mil seguidores que ele tinha no Facebook manifestaram tristeza ou choque.

Victor Hugo escreveu: “Ele parecia tão bem estes dias, agora se foi, e nem o motivo eu sei”.

Baruh Fellype publicou no mural: “Meu coração sempre estará ao seu lado Gabriel, descanse em paz!”.

Lucca‎ apenas deixou vários emojis chorando e um coração partido no mural do perfil do falecido, que já tinha se transformado em uma página póstuma (quando a rede social é avisada que o dono do perfil morreu, e seu nome passa a ser acompanhado da frase “em memória de”).

Teria sido uma bonita cena de comoção ao redor de uma tragédia.

Só que Gabriel Yashi nunca existiu.

O perfil era um fake que, junto com o perfil também fake de um namorado, encenou uma fanfic de quatro anos sobre um relacionamento que ia e vinha, e que terminou em morte.

Todos choram

A morte foi o começo da minha relação com Yashi. Três amigos comentaram na foto de Gabriel, de quem eu nunca tinha ouvido falar na vida, lamentando o ocorrido. Pessoas perguntaram sobre a morte em grupos que reúnem dezenas de milhares de pessoas, como o Way e o LDRV (Lana Del Rey Vevo).

Uma pontada de curiosidade fez com que eu clicasse no perfil, com o interesse mórbido de saber o que tinha acontecido (e logo pensar que poderia acontecer comigo também).

Um dos primeiros posts que vejo no perfil do finado é o aviso de onde será a missa, escrito por um amigo de Yashi. Ele diz:

“Aos familiares distantes, amigos e colegas de trabalho e faculdade, nosso querido Gabriel vai ser velado amanhã a partir das 5h da manhã na capela Modial (R. José Triglia, 330 - Vila das Palmeiras) aqui em Guarulhos. Forças!”

Um comentário no post, entretanto, levanta suspeita: “Sou de Guarulhos e não conheço essa capela. Moro do lado, e nunca ouvi falar”. Depois de passar 40 minutos me recriminando por duvidar da veracidade de uma morte, decido que vou investigar.

Velório sem corpo

A Modial é uma fábrica de três andares que produz artigos funerários como coroas de flores artificiais, maquiagem para cadáver e urna para armazenar cinzas. “Aqui não tem capela, não, senhor”, diz a recepcionista do lugar. “Tem certeza de que não é a igreja dos mórmons, no fim da rua?” Desço a rua, só para descobrir que a igreja não realiza velórios. Está vazia. E que ninguém ali conhece Gabriel Yashi, que teoricamente deveria estar sendo velado naquele momento.

No campus da faculdade onde Gabriel dizia estudar direito, ele nunca foi visto. “A gente conhece todos os alunos”, diz uma funcionária com dez anos de casa. “Ele nunca estudou aqui.” A Uninove confirma oficialmente: não há nenhum aluno com esse nome.

Outros estudantes tampouco conheciam o finado. Mostro a foto para mais de dez pessoas, de cursos e anos diferentes. Nada. O máximo de informação que aparece é quando uma segundo-anista de direito diz: “Olha, não conheço, não. Mas, se ele quiser me add, pode vir”, e ri com as amigas. “Bem gatinho.”

Em duas das centenas de fotos que Gabriel postou, é possível ver a cordinha do crachá da empresa onde ele trabalhava. E nela está o nome da firma, uma multinacional de mão de obra para controle de mercadorias em fronteiras.

Ligo para a empresa. Nenhum Gabriel trabalha no escritório paulistano, no bairro de Santana. Nem no carioca. A firma, entretanto, se recusa a fazer um pronunciamento oficial.

Converso com nove amigos que também eram amigos de Yashi nas redes sociais. Ninguém jamais o encontrou ao vivo. “A gente até trocou mensagem, ficou falando sacanagem”, diz um amigo ator. É o mais próximo que qualquer um deles chegou do finado.

Tirando isso, eram muitos likes e comentários que ligavam essas pessoas a Gabriel Yashi. Ele postava pelo menos duas vezes por dia no Facebook. Muita coisa sexual, do nível de “Só chamo de bb se puder botar para mamar”. Mas também elogios a Katy Perry (que achava melhor que Britney) e lançamentos de hits ou de flops.

Mas o tema mais recorrente no perfil era o relacionamento com Mateus Zimermam, um cara musculoso, como ele, de topetinho. Os dois protagonizam tantas cenas de amor quanto términos. “Agora eu tô solteira e ninguém vai me segurar”, era um post de Gabriel de abril de 2017 que teve mais de mil curtidas. Semanas depois, ele voltaria a mudar seu status para “Em um relacionamento sério com Mateus Zimermam”. Os dois discutiram em público como abrir o relacionamento “só fez fortalecer o amor” (678 curtidas).

Mas há algo de errado com o namorado enlutado. Mateus tampouco parece ter estudado direito na USP, como propagandeia no seu perfil. Ninguém com esse nome passou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, seja pelo vestibular ou pelo Enem.

Decido conversar com Mateus, que ainda não aceitou a solicitação de amizade que mandei dias atrás no Facebook. A essa altura, é impossível ainda cravar que o perfil de Gabriel é falso, por mais que pesem os indícios, então maneiro o tom na hora de tentar conseguir mais informações com ele sem ser desrespeitoso.

Chico
Oi, Mateus. Tudo bem?

Ele aceitou sua solicitação.

Mateus
Bom dia. Não tá nada bem

Chico
Fiquei sabendo da sua perda. Sinto muito. É até por isso que te procuro

Mateus
Tá doendo muito ainda

Chico
Você topa falar um pouco sobre o Gabriel? Trabalho no Buzzfeed e estou começando a escrever sobre a morte dele

Mateus
Topo sim

Chico
Não quero te fazer remoer ainda mais essa dor, então vai ser bem simples. Queria saber como vocês se conheceram, e quanto tempo ficaram juntos. Como era a convivência.

Mateus
Nos conhecíamos desde pequeninos. Ele era afilhado da minha mãe

Chico
Você também é de Guarulhos?

Mateus
Sim, sou.

Chico
E as famílias eram amigas, daí vocês ficaram amigos? Digo, antes de namorar

Mateus
Sim, era amiga. Nós éramos amigos e com o tempo, a gente começou a gostar um do outro. Nós começamos namorar quando ele tinha 15 e eu 21

Chico
E estavam juntos até agora, ou já tinham terminado?

Mateus
Esse ano iríamos completar oito anos. A gente brigava às vezes, mas nada sério, sempre reatávamos.

Chico
E posso perguntar do que ele morreu? Vi muita comoção no Facebook mas ninguém parecia saber a causa

Mateus
Foi infarto fulminante. Ele já tinha problemas no coração

Chico
Caramba.Deve ter sido um choque. Ele já tinha se formado ou ainda estava na faculdade?

Mateus
Eu perdi o sentido da vida, de verdade. Ele tava no 7° semestre de direito na Uninove. Estava eufórico com a reta final do curso

Chico
E por que você acha que as pessoas se comoveram tanto com a morte dele? Vários amigos meus comentaram

Mateus
Ele era muito querido, uma pessoa muito carismática. Lindo por dentro e por fora. Uma pessoa que não portava nenhum preconceito

Chico
Poxa. Não quero te fazer remoer muito esse assunto. Para publicar qualquer obituário, um texto sobre alguém que morreu, a gente precisa ter autorização da família. Como será que eu consigo falar com os pais dele?

Mateus
Ele só tem mãe. Ela mora em Guarulhos também, eu posso falar com ela. Me passa teu whats, se caso ela aceitar, eu entro em contato.

Chico
Agradeço muito: 9XXXX-XXXX.

Mateus
Esse Buzzfeed é o que mesmo?

Chico
É um site americano de notícias. Fala muito sobre coisas da internet

Mais incongruências. Publicações do passado comentavam sobre o pai de Yashi. A faculdade que nunca existiu. E o primeiro post de Mateus, após o óbito, afirmava que ele tinha morrido de um rompimento da artéria aorta, “talvez por excesso de bebida”, não de infarto.

Passa uma semana, e nada da família de Gabriel Yashi entrar em contato. Mateus também para de responder as minhas mensagens, em que perguntei em qual cemitério Gabriel foi enterrado e se a mãe dele não toparia falar sem que seu nome fosse divulgado. Mensagens visualizadas, mas não respondidas.

EuNaBaladaSB

Passo horas olhando para os perfis dos namorados, em busca de pistas. São dezenas e dezenas de fotos — todas com muitas curtidas, dos milhares de seguidores da dupla. Fotos dos dois quando crianças. Os dois na academia. Os dois adolescentes, ainda de aparelho nos dentes. Os dois na academia de novo.

Uma busca no Google Images não aponta que essas fotos tenham sido usadas em outro lugar da internet. Como eles poderiam ser fakes se têm tantas fotos diferentes e inéditas das mesmas pessoas?

Até que uma foto de Mateus fazendo exercício para peito na academia, com uma parede roxa atrás, revela um descuido da narrativa. A foto parece ter sido cortada, mas resta um pedaço de uma marca d’água no canto superior direito. Em letras tribais, parece estar escrito: EuNaBaladaSB, por mais que as letras estejam pela metade.

Encontro na internet o site da Eu Na Balada SB. É uma empresa de fotografia que faz festas de 15 anos e books para aspirantes a modelo numa cidade gaúcha.

Mando uma mensagem para o número de telefone que aparece no site. A mensagem de WhatsApp é respondida instantaneamente: “Oi, tudo bem? O site é meu sim!”, escreve Jordy Guasso, um jovem loiro.

Conto para o fotógrafo que estou investigando uma possível fraude. E que algumas das fotos dos perfis suspeitos podem ter sido tiradas por ele. Mando a foto de Mateus fazendo supino, que havia me levado até o site de Jordy.

“É. Essa foto é minha. Isso é aqui em São Borja.” A cidade tem 61 mil habitantes e fica quase na fronteira com a Argentina. “Nem imaginava que alguém de São Paulo acessava meu site. Como eles chegaram num site do interior do interior do Rio Grande do Sul, eu não sei.”

Faz quase quatro anos que Jordy e sua equipe fotografam os frequentadores de uma academia local uma vez por semana. As fotos que os fakes surrupiaram não estão no site — foram só usadas no Instagram da academia, e por isso não aparecem nas ferramentas de busca.

Um dia depois do nosso primeiro contato, Jordy (que foi batizado em homenagem ao bebê cantor francês da década de 1990) me envia dois perfis de Facebook. São os rostos de Yashi e de Mateus Zimermam, mas com nomes completamente diferentes.

Gabriel Yashi estava vivo. Mas seu nome na vida real é Junior Machado. Tem 20 anos, estudou ciências contábeis e trabalha com serviço aduaneiro na fronteira Brasil-Argentina.

O outro perfil é de Mateus. O namorado fake do morto fake usava as fotos de Anildes Machado, 22, que trabalha em uma empresa de comércio exterior e é irmão de Junior Machado.

Adiciono os dois irmãos nas redes sociais e explico a que vim. Mando as fotos deles que tinham sido surrupiadas e mostradas numa novelinha de Facebook para milhares de pessoas. Anildes topa dar uma entrevista por e-mail.

Quando você e seu irmão descobriram os fakes?

Dois anos atrás descobrimos, através de um amigo, dois perfis que usavam minhas fotos e as fotos do meu irmão com outros nomes. Na época, nós denunciamos ao Facebook e os perfis sumiram, mas acredito que apenas tenham nos bloqueado, pois os perfis fakes estão ativos até o momento. Só tomamos conhecimento devido ao seu contato com o fotógrafo da academia em que treinamos.

Tentaram denunciá-los? O que o Facebook respondeu?

No primeiro caso, denunciamos e não obtivemos nenhum retorno significativo, mas acredito que hoje em dia a resposta seja mais rápida e eficaz, as Políticas de Privacidade estão bem mais atualizadas.

O que você acha que leva essas pessoas a roubarem suas fotos, e usá-las para criar personagens que não existem?

Na minha opinião, são pessoas que não têm vida social ou que se sentem excluídas da sociedade, afinal é uma perda de tempo uma atitude como essa, e que não pensam nas consequências de seus atos, causando um transtorno para quem tem sua identidade roubada.

O que vocês pretendem fazer a respeito desses fakes?

Conforme contato com um amigo que possui conhecimento na área jurídica, fomos aconselhados a juntar provas e abrir uma ocorrência junto a Polícia Civil, e, se for possível identificar o autor desse crime, entraremos com as medidas cabíveis para que a pessoa não fique impune.

Escrevo para o Facebook, perguntando por que um perfil fake denunciado dois anos atrás segue existindo, e o que pessoas ludibriadas como os irmãos Machado devem fazer.

O Facebook responde:

“Não permitimos contas falsas ou pessoas tentando se passar por outras, e estamos sempre trabalhando para garantir que nossos Padrões da Comunidade sejam respeitados. Contamos com nossa comunidade para reportar conteúdos ou contas que possam violar nossas políticas, e agradecemos ao BuzzFeed por ter nos alertado sobre estes perfis.”

Mando também uma última mensagem para Mateus Zimermam, na esperança de que ele tope falar sobre o que motivou a manter por quatro anos a fanfic com as fotos dos irmãos Machado. E qual foi o motivo para matar um dos seus personagens.

“Eu encontrei a pessoa que fez as fotos que você e o Yashi usam. E encontrei também as pessoas da foto, são dois irmãos do Rio Grande do Sul. Eu queria conversar contigo sobre por que você usou essas fotos.”

Mateus Zimermam, ou quem quer que esteja por trás do perfil de Mateus e de Gabriel Yashi, imediatamente me bloqueia no Facebook. No mesmo dia, o Facebook tira do ar as páginas de Mateus e de Gabriel. É a morte de um amor que, fora do fundo azul da rede social, nunca existiu.

Utilizamos cookies, próprios e de terceiros, que o reconhecem e identificam como um usuário único, para garantir a melhor experiência de navegação, personalizar conteúdo e anúncios, e melhorar o desempenho do nosso site e serviços. Esses Cookies nos permitem coletar alguns dados pessoais sobre você, como sua ID exclusiva atribuída ao seu dispositivo, endereço de IP, tipo de dispositivo e navegador, conteúdos visualizados ou outras ações realizadas usando nossos serviços, país e idioma selecionados, entre outros. Para saber mais sobre nossa política de cookies, acesse link.

Caso não concorde com o uso cookies dessa forma, você deverá ajustar as configurações de seu navegador ou deixar de acessar o nosso site e serviços. Ao continuar com a navegação em nosso site, você aceita o uso de cookies.