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O dia em que o rabino Henry Sobel desafiou a ditadura

Em 1975, a versão mentirosa para o assassinato de Vladimir Herzog foi contestada pela coragem de alguns religiosos – como Sobel –, impondo uma poderosa derrota política aos torturadores.

Morto aos 75 anos em decorrência de um câncer de pulmão nesta sexta (22), o rabino Henry Sobel foi um dos religiosos que impuseram uma das mais importantes vitórias políticas da sociedade civil contra a ditadura militar durante a vigência do AI-5.

Foi a coragem do rabino que, ao se recusar a sepultar Vladimir Herzog na ala do cemitério destinada aos suicidas, ajudou a desmontar a farsa montada pelo regime para encobrir que o jornalista fora morto durante a tortura nas instalações do Exército, em São Paulo.

Então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, Herzog apresentou-se voluntariamente ao DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas - Comando Operacional de Informações) do 2º Exército, em São Paulo, na manhã de 25 de outubro de 1975, um sábado. Herzog era um esquerdista sem envolvimento com a luta armada, com endereço conhecido e trabalho fixo.

Na véspera, oficiais do Exército foram à TV para levá-lo e ele convenceu-os de que não poderia deixar a emissora antes de terminar a edição de um telejornal. Comprometeu-se a apresentar-se no dia seguinte, um sábado. Naquele dia, Vlado despediu-se da mulher, Clarice, com um beijo, deixou-a com os dois filhos pequenos em casa e seguiu para o quartel, cumprir a intimação.

Sabe-se pouco do que aconteceu nas horas seguintes. Em "A Ditadura Encurralada", quarto dos cinco volumes de sua série de livros sobre a ditadura militar, o jornalista Elio Gaspari escreve que, assim que entrou no DOI, Vlado trocou as roupas que usava e vestiu o macacão dos presos. Pela manhã, foi acareado com dois colegas e depois ficou a sós com um interrogador.

De um corredor contíguo à sala de interrogatórios, os dois colegas presos ouviram seus gritos e a ordem para que fosse levada uma máquina de choques elétricos. Um rádio, em volume alto, abafava os sons. Em algum momento daquela manhã, Herzog assinou uma confissão em que reconhecia sua militância no Partido Comunista Brasileiro.

Às 22h08 daquele mesmo dia, a agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações) em Brasília recebeu o seguinte comunicado: “Info que hoje, dia 25 out, cerca das 15 hs, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército [...]”, segundo registra o livro de Gaspari.

Os militares sustentaram a versão mentirosa de que o jornalista se matara para não revelar segredos do PCB, fazendo circular uma foto com Herzog enforcado na grade de uma cela, ajoelhado – numa posição dificílima para alguém conseguir se suicidar por enforcamento.

A farsa foi desmontada por uma sucessão de atos de coragem pessoal nos dias seguintes. Primeiro, foi o da mulher, Clarice, que se recusou a sepultá-lo no próprio domingo, quebrando a regra de que cadáveres mortos na tortura eram sepultados só pela família, rapidamente. Clarice marcou o sepultamento para o dia seguinte e o domingo foi dia de funeral.

O corpo foi levado, em um caixão fechado, ao Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo. Religiosos que tiveram acesso ao corpo de Herzog antes do enterro relataram ao rabino Sobel, da Congregação Israelita Paulista, as marcas de tortura.

O rabino determinou então que o jornalista fosse enterrado no centro do cemitério. Não foi uma decisão banal: pela tradição judaica, pessoas que cometem suicídio devem ser sepultadas às margens do cemitério, não no centro dele. Ao fazer isso, o rabino contestou a versão falsa do regime militar.

"Henry Sobel foi a primeira pessoa que, de uma forma institucional, denunciou o que aconteceu ao meu pai, denunciou a farsa que o governo havia montado", afirmou ao BuzzFeed News nesta sexta-feira o filho de Vlado, Ivo Herzog, que dirige o instituto que leva o nome jornalista.

Nas horas seguintes, uma aliança de opositores começou a se formar em torno de Herzog. O cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o senador Franco Montoro (MDB) velaram o morto. Também emergiu a figura de Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, que decidiu emitir uma nota chamando os jornalistas para o sepultamento, na segunda-feira, 26 – o que muitos consideraram uma imprudência, já que o AI-5 estava em plena vigência.

O assassinato de Herzog foi uma crise que se instalou no gabinete de Ernesto Geisel: o presidente precisava afirmar sua autoridade e enquadrar a linha-dura que operava os órgãos envolvidos em tortura ao mesmo tempo em que temia o crescimento de um novo tipo de oposição vinda da sociedade civil.

Foi precisamente esta oposição que se materializou na catedral da Sé, em São Paulo, seis dias depois do crime do Exército, num culto ecumênico que reuniu 8.000 pessoas que silenciosamente lotaram o local, transbordando pelas escadarias da praça, conforme o registro de Gaspari. A maioria eram universitários. Antes da entrada dos celebrantes, um padre pedia ao público que repetisse as preces do culto, nas quais havia um refrão: “Nas minhas dores, ó senhor, fica a meu lado!”

Entraram o cardeal Arns, o rabino Sobel o reverendo anglicano James Wright e mais vinte sacerdotes.

"Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor", pregou dom Paulo Evaristo Arns.

"Não matarás. Quem matar se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da história e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus", disse o cardeal-arcebispo.

Muitos anos mais tarde, numa entrevista ao apresentador Serginho Groisman, Sobel repassou os acontecimentos daquela semana: "Foi um momento muito triste de nossa história. Quando digo nossa, me refiro ao Brasil e a mim."

"A coragem foi de dom Paulo, não minha", disse o rabino a Serginho Groisman.

E continuou: "Dom Paulo disse: 'Ele foi morto. Ele foi assassinado.' Eu disse: 'eu concordo com o senhor'".

"Vladimir Herzog não foi um suicida. Ele foi assassinado por um regime militar corrupto", disse o rabino.

Quando falou ao BuzzFeed News sobre a morte de Sobel, Ivo Herzog, que era criança quando o pai foi assassinado, relembrou um outro aspecto de Sobel, contornando a ortodoxia religiosa.

"Um rabino não celebra um ato religioso onde haja pessoas enterradas, mas ele participou da celebração na Sé, onde há bispos católicos enterrados", disse.

Naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a multidão calada impôs uma importante derrota política à ditadura militar, iniciando um movimento de contestação do governo vindo da sociedade civil.

Levaria, contudo, quase 10 anos para a ditadura chegar ao fim.

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