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Pessoas trans fazem fila em mutirão para, finalmente, mudar o nome em documento

Mulheres e homens trans querem deixar para trás parte das dificuldades que enfrentam com a aceitação de sua identidade.

Quando era pequena, Bruna Laura se segurava para não ir ao banheiro da escola. Queria usar o das meninas (gênero com o qual se identifica), mas não podia. Chegou a ser advertida pela diretoria para não fazer mais isso. No banheiro dos meninos, era vítima de agressões dos colegas.

"Um dia, eu cheguei a me mijar toda na sala de aula com medo de usar o banheiro da escola. Tomei horror de estudar e só voltei agora para completar o ensino fundamental. Faço EJA [Educação de Jovens e Adultos]", disse ela, enquanto esperava a senha no primeiro lugar da fila de pessoas transgênero para mudança do registro civil no centro de São Paulo.

É o mutirão para regularizar a certidão de nascimento da Defensoria Pública de São Paulo, realizado pela primeira vez na sexta-feira (18). Em fevereiro, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que pessoas trans podem mudar o nome e a indicação de gênero de seu registro civil sem a necessidade de fazer a cirurgia de redesignação sexual. Para isso, é preciso ingressar com o pedido.

Com 40 anos, Bruna Laura Lages passou a vida toda tendo de explicar que é uma pessoa trans e que o nome e gênero que aparecem em seus cartões, no RG e na certidão de nascimento não correspondem à sua identidade.

Chamada de Bruna pela família e de Laura na hamburgueria onde trabalha ("Tinha muita Bruna lá, então eu disse 'agora eu chamo Laura'"), a ajudante geral estava na fila para incluir o nome composto na certidão de nascimento.

"Você mostra o RG ou o cartão e vê, até no olhar da pessoa, a desconfiança, a vontade de perguntar 'esse documento é seu mesmo'? Pois, para mim, perguntar ofende. Acho que quem lida com o público tem de saber o que está acontecendo no mundo. Tem de olhar o documento e a gente e, no mínimo, perguntar: 'como você quer que eu te chame?'", disse Bruna Laura.

O trabalho na Castro Burger, estabelecimento LGBTQ-friendly na Vila Mariana, é seu primeiro emprego formal, com holerite e direitos trabalhistas. Antes, ela se prostituía. "Eu enfrentei problemas por causa de documentos e continuo enfrentando. Estou esperando essa mudança há 30 anos. Para mim, é um resgate de cidadania. Me faltou oportunidade, me faltou estudo", disse ela.

Amigo de Bruna Laura, Caio Cunha Andrade, de 25 anos, foi a primeira pessoa a chegar diante do prédio da Defensoria, na rua Boa Vista, às 7h. Guardou a vaga da amiga como primeiros da fila. "Eu não queria perder a oportunidade. Estou muito ansioso", disse Caio.

Caio é bartender na mesma hamburgueria que Bruna. Na escola, conta, não chegou a sofrer bullying dos colegas. "Meu irmão ameaçava bater em todo mundo que me ofendesse e eu tinha minha turma. Minha mãe também sempre me defendeu. Ela sabia desde os meus sete anos porque eu nunca gostei de coisas de menina."

Caio está na fila do SUS para fazer a cirurgia de retirada de seios há quatro anos. Espera também o tratamento hormonal que vai lhe dar o que ele mais quer: barba. "Acho que assim, com barba, as pessoas param de falar 'ela' quando falam de mim."

Ser chamado pelo gênero que não corresponde a sua identidade é um problema constante para as pessoas trans que conversaram comigo na sexta.

"Quero assinar meu nome. A pessoa que me batizou, minha mãe, me chamava pelo nome social. Por que as demais pessoas me chamam pelo outro nome? Eu não aceito", disse Bruna Laura.

Com 18 anos, o estudante de química Ethan Paixão também não aguenta ser tratado como "ela". "Na escola, me chamam de Ethan, mas é 'a' Ethan. E eu espero que com os novos documentos as pessoas evitem me chamar de 'ela'. Também vou começar o tratamento com hormônios, pelo SUS, no mês que vem", contou ele.

E não é só na escola que Ethan enfrenta problemas. Ele queria uma vaga de garçom, mas a pessoa que contratava disse que a vaga era para homens. Não adiantou insistir que ele era um homem trans.

A recepcionista e estudante Samara Paula, de 27 anos, espera que a adequação dos documentos civis ajudem sua família a aceitar sua transexualidade. "É uma vitória para mim. Acredito mesmo que vai ser mais fácil a vida", disse. Ela contou que evita ir até ao cinema para não apresentar a carteirinha de estudante. Tem medo de ouvir "essa carteirinha não é sua".

"A gente sofre chacotas, é motivo de risadas. Hoje acaba isso. Quer dizer, é mais uma batalha vencida, porque são muitas as barreiras que a gente enfrenta", disse a dona de casa Lorena Almeida Modesto, de 34 anos.

Lorena é casada há três anos, mas agora vai oficializar a união, com os documentos novos. "Meu marido é analista de sistemas e não posso receber os direitos dele na empresa por causa dos meus documentos. Agora eu vou casar, vou ter convênio médico, tudo", disse ela.

É em cada detalhe que Lorena vê a mudança. "Uma das primeiras coisas é correr no banco para trocar o nome do cartão. Outra é receber uma correspondência decente, com o meu nome, na minha casa."

A troca do nome nos cartões de crédito e no banco é também um alívio para a estudante de psicanálise e linguagem corporal Eduarda da Costa, de 35 anos. "Acho que é muito importante você ter um certificado com o seu nome feminino. Eu nunca tive problema ao apresentar um cartão de crédito com o outro nome, mas é uma frustração e dá um pouco de medo do que pode acontecer", disse Eduarda.


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