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"Não se pode permitir que pessoas enlouquecidas tentem agredir um médico cumprindo seu dever"

Médico especialista em aborto legal diz que ''são 80 anos de lei não cumprida neste pais".

O médico Jefferson Drezett Ferreira coordenou por mais de 25 anos o serviço de atendimento a vítimas de violência sexual do hospital Pérola Byington, de São Paulo, uma das maiores referências do país em saúde da mulher e atendimento a casos de aborto legal. Mesmo sendo ateu, foi excomungado pela Igreja Católica; e enfrentou, como os médicos de Recife, protestos muitas vezes nada pacíficos dos chamados grupos pró-vida.

Em entrevista ao BuzzFeed News, o médico, que hoje atua nas faculdades de Saúde Pública da USP e de Medicina do ABC, afirma que os médicos não podem se render às críticas quando estão cumprindo seu papel e a lei. E lembra que o direito ao aborto em casos de estupro e risco de morte para a mãe, as duas condições encontradas no caso da menina do Espírito Santo, são garantidos por uma lei que já tem 80 anos.

Ao analisar o caso da menina de São Mateus, que teve o aborto legal negado pelo Hospital Universitário Cassiano Antonio de Morais (Hucam), de Vitória, o médico é duro com a instituição:

"São 80 anos que temos uma lei permitindo que a gente faça alguma coisa; e 80 anos depois um hospital vem nos dizer que não tem protocolo [para o aborto legal]? Ele teve 80 anos para se organizar. E é um hospital universitário, que ensina. Vai ensinar o quê? Ensinar a não cumprir a lei, a não cumprir seu dever?"

Confira a entrevista:

O sr. já foi excomungado como ocorreu com o médico do Recife, o mesmo que fez o aborto da criança no domingo?

Eu fui excomungado uma vez e, na segunda vez que foram me excomungar, eu disse: eu já fui expulso do clube. Fui excomungado na Nicarágua nos anos 2000. Mas o mais interessante é que ninguém me perguntou se eu sou católico para ser excomungado. Eu sou ateu, né? É interessante como a Igreja Católica se sente proprietária das pessoas, sem sequer perguntar para as pessoas se elas têm qualquer relação com ela. Isso é uma bobagem, né?

O sr. não acha que esse é mais um percalço enfrentado pelo médico no atendimento do aborto legal?

É verdade. Para mim pode não ser um problema, mas para muitas pessoas pode ser muito pesaroso. Pode ser muito impactante. A maioria das pessoas têm relações com suas crenças, com a espiritualidade. Isso pode ser muito difícil. É um mecanismo de pressão enorme você ser hostilizado dessa maneira.

Como é ser chamado de assassino enquanto se concentra em atender uma paciente em situação de risco ou de violência? Isso acontece sempre ou é um evento de agora, desses tempos mais árduos que temos vivido?

Se esse caso não tivesse tido a exposição que teve, possivelmente não teria uma manifestação tão intensa como se teve, de gente querendo invadir o hospital, com xingamentos de toda natureza. Se esse caso tivesse tido o respeito e a privacidade que deveria ter, se o nome da menina fosse preservado, se quem a estivesse atendendo fosse preservado, isso não aconteceria. Nos tempos que a gente vive aqui no Brasil, de manifestação de ódio permanente, de ódio de todas as naturezas, é pedir que essas manifestações aconteçam. Faz parte do jogo democrático ter posições diferentes e que possam se expressar, mas não quer dizer que isso permite que a outra pessoa me ofenda, me ameace.

Eu, pessoalmente, não tenho nenhum problema com essas hostilidades. A única opinião que importa é a da criança que está naquela situação. Há de haver um limite para tudo isso, não se pode permitir que um grupo de pessoas enlouquecidas invada um hospital para tentar agredir um médico que esteja simplesmente no cumprimento do seu dever.

Há casos de crianças que engravidam e decidem não abortar?

Sim. Temos muitos casos no hospital de meninas de 10, de 11 anos, em uma situação como essa. Não é algo tão raro e incomum. Já tivemos outros casos em que a criança, a adolescente, tinham uma opinião diferente. Não quer realizar o aborto. E isso tem de ser respeitado tanto para a mulher adulta como para uma adolescente. O desejo da criança tem de ser respeitado, desde que a criança possa entender as consequências. Quando há conflito familiar, a Justiça intervém. No caso dessa menina [do Espírito Santo], era completa a aversão que ela tinha pela gravidez.

Qual o pior momento do seu dia, quando dedicado a atender casos de aborto legal?

Tem tanta coisa ruim, mas a gente tem o privilégio de conseguir oferecer à pessoa o que é de direito dela e de muita importância para ela. Isso é fundamental. Pode mudar dramaticamente o futuro de uma pessoa quando você respeita as decisões dessa pessoa e a trata dentro dos melhores limites da empatia, da solidariedade e da ética.

Mas sempre foi muito doloroso para mim perceber a omissão do poder público para essas pessoas. Como uma mulher tem de sair de um estado para outro para conseguir ter acesso a algo que é absolutamente direito dela?

E os protestos como o que houve em Recife?

Quem trabalha nessa área tem de saber que está sujeito ao desconforto e nem sempre essa divergência é colocada de maneira educada. Mas são ônus que a gente tem para trabalhar com coisas importantes.

Como o sr. vê esse caso de Vitória?

O maior incômodo, a coisa mais constrangedora, é ver o descaso que o Estado brasileiro tem para com essas mulheres; é uma crueldade. O que vemos em Vitória é um pouco disso: teve 80 anos e não organizou um protocolo e vai continuar não organizando, não pensando nisso. Provavelmente nada vai ser feito contra a gestão desse hospital. Os hospitais simplesmente escolhem que leis vão ou não vão cumprir, sem que o estado brasileiro faça qualquer tipo de objeção. O Estado é absolutamente conivente com esse tipo de visão.

Não posso dizer que o médico que negou o procedimento deva receber retaliação. A objeção de consciência está prevista na lei, embora possa ser questionada. Mas a instituição não podia dizer que não tinha um protocolo quando o Brasil tem um dos melhores protocolos do mundo.

Sao 80 anos de lei não cumprida neste país.

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