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Em uma única aldeia, 20 mortos e 646 doentes

A maior parte dos atingidos pela Covid-19 são os mais velhos, responsáveis por guardar e transmitir a cultura dos indígenas.

Na terra indígena Taunay Ipegue, no Mato Grosso do Sul, a pandemia do novo coronavírus já deixou um rastro de destruição que não será esquecido: até esta terça-feira (25) foram 20 mortes e 646 casos da doença. A comunidade tem 6 mil pessoas e a maior parte dos atingidos pela Covid são os mais velhos, responsáveis por guardar e transmitir a cultura dos indígenas.

Taunay Ipegue fica em Aquidauana, a 140 km de Campo Grande, e foi o primeiro território indígena do estado a fazer sua própria barreira sanitária, em 14 de março. "A gente controlava a entrada e saída das pessoas. E impedia os idosos de irem para a cidade. Quando veio esse primeiro óbito, foi um susto para nós", contou o professor Erik Paiva, 22, em entrevista por telefone ao BuzzFeed News.

Erik fala da morte de Onéssimo Cândido, 41, em 14 de julho. Onéssimo vivia recluso na aldeia, onde as próprias mulheres confeccionam as máscaras de proteção individual contra a doença.

Para os terena, o coronavírus entrou na aldeia depois de um evento político que ocorreu em plena terra indígena, no dia 2 de julho. As autoridades locais fizeram uma cerimônia para marcar a assinatura da ordem de serviço do asfaltamento da BR-442, que passa pela região.

O asfaltamento sempre foi uma das lutas do terena. Houve discurso dos políticos e canto e dança dos índios. Segundo Erik, havia mais de 300 pessoas. "Era uma aglomeração. E, dias depois, o presidente da Assembleia Legislativa, Paulo Corrêa (PSDB), testou positivo para Covid."

"Era o sonho da comunidade, mas veio numa hora errada. Não o asfaltamento, mas o ato politico. Políticos foram lá fazer politicagem", indigna-se Lindomar Terena, do Conselho do Povo Terena e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Lindomar explica que a região de Aquidauana é onde a situação está mais grave para os terena. Ao todo, entre os 30 mil índios da etnia, houve 46 mortes.

Onéssimo morreu no dia 14 de julho. E as mortes se sucederam: Joãozinho da Silva, 58, líder cultural. Jorge Luiz, 48, o radialista da aldeia. Airson Gonçalves Joaquim, 35, cacique da Dança da Ema. Os líderes religiosos Dona Loide, 82, e seu marido, Paulo Simplicio Francisco, 72. Delfonso Jordão, 60, pastor evangélico, morto ontem (24), depois de 20 dias internado.

São 20 pessoas que eram ativas na comunidade e que não puderam sequer receber os ritos de morte. "Teve caso aqui de membro da nossa comunidade ser enterrado à noite, uma coisa que nunca houve na história do povo terena. Sem direito a nenhum tipo de última homenagem. Isso é uma coisa que chocou muito a comunidade. Todo mundo passa para outra a outra vida. Mas, ao passar, tem um ritual de velar, cantar, homenagear", afirma Lindomar.

Nos ritos fúnebres dos terena, as anciãs entoam cânticos na língua indígena durante a noite. O corpo é enterrado no cemitério local no dia seguinte, sempre acompanhado por toda a comunidade. Por motivos de saúde, esses ritos tiveram de ser suspensos.

"Temos de respeitar os protocolos. Mas isso é uma coisa que estamos nos perguntando neste momento. Como você leva seu ente querido sem fazer a despedida para ele? Isso é novo e tem preocupado lideranças e familiares, membros da comunidade. Como vamos entender que aquela pessoa já partiu?", questiona Lindomar.

Erik Paiva diz que, quando vão para o hospital, os terena já estão bastante debilitados. Eles são encaminhados para o hospital regional de Aquidauana. Quando os casos ficam mais graves, são transferidos para Campo Grande. Foi assim com o pastor Delfonso Jordão, que não resistiu à doença.

Os índios terena escrevem koronavíru para chamar o vírus da Covid-19, mas preferiram não dar nome indígena para a pandemia que se alastra entre suas aldeias. Para eles, ao dar nome a um acontecimento, ele não vai embora.

"Você não dá nome para essas coisas para elas não ficarem marcadas ali. Não temos nome especifico também para a chegada do sarampo", explica o professor Erik Paiva.

As histórias tristes se estendem de ponta a ponta: Dona Loide e seu Simplício, um casal de religiosos evangélicos, morreram com poucas horas de diferença. Quebrando o protocolo, os indígenas fizeram uma última homenagem a Joãozinho da Silva. "Era um desejo dele. Joãozinho era um impulsionador da nossa cultura", diz Erik.

Nas fotos, Joãozinho aparece tocando um tambor durante a tradicional dança da ema.

O professor lamenta: "O ritual fúnebre é o momento de estar o corpo com a família, de ter os cantos em terena, o discurso na língua, o cortejo tradicional, com nosso povo trajado, falando na língua. Todo esse processo está sendo roubado da gente. Essa doença não está matando só o fisico, está roubando os nossos rituais."

E a pandemia, segundo Erik, encontra nos indígenas uma população enfraquecida. "A saúde primária tem sido ineficiente há muito tempo. O órgão governamental tem sido falho ha muitos anos. Os índios sofrem com doenças renais, doenças crônicas, diabetes, comorbidades."

A morte dos mais velhos é também um golpe na cultura dos indígenas.

"Quem tem seu jovem vivo tem o futuro, mas quem não tem o velho, ele perde de onde veio. O 'de onde veio' é mais importante do que o 'para onde vai'. Se hoje a gente tem 305 povos indígenas é porque esses velhos resistiram", afirma o professor.

"A gente se sente como uma árvore que vai perdendo a sua força. Os terena têm esse nome, de que nos brotamos da terra. Estamos perdendo as nossas raízes. É muito doloroso", afirma Erik Paiva.

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