Se um paciente tivesse entrado em coma dez anos atrás e acordasse na noite desta sexta-feira (14), certamente ficaria surpreso ao ver o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes em uma live do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Na semana em que o país já superou mais 100 mil mortos de coronavírus, o evento foi simbólico em muitos aspectos.
Crítico ferrenho das invasões de propriedades rurais pelo movimento durante o governo Lula (2003-2010), Gilmar chegou a pedir uma investigação para apurar se havia ou não recursos públicos financiando ações do MST em 2009, quando presidia o Supremo. Hoje, foi saudado por líderes do movimento.
João Pedro Stedile, líder histórico do MST, que precedeu o ministro na live, disse que Gilmar Mendes era convidado da Escola Nacional Florestan Fernandes, centro de formação do movimento, e elogiou recentes posições de Gilmar, como a que disse que o Exército poderia estar se associando ao "genocídio" numa crítica aberta à maneira como o governo Jair Bolsonaro está lidando com o combate à pandemia.
"Eventuais divergências que tenhamos não nos impedem de dialogar", disse o Gilmar Mendes, logo no início de sua fala de 30 minutos.
A democracia, continuou ele, é a busca de "consensos básicos".
Na fala, Gilmar listou decisões do STF que impediram o governo federal de relaxar ainda mais no combate à pandemia e a acelerar o pagamento do auxílio emergencial à população que ficou mais vulnerável economicamente durante a pandemia.
"O tribunal não faltou ao Brasil. Não fosse a atividade do tribunal, nós estaríamos enfrentando um quadro ainda mais grave", disse.
"Repudiamos a tentativa de tratar a pandemia de maneira atenuada. Enfatizamos sempre a necessidade que todos nós nos pautássemos em uma medicina calcada em evidências e fortalecêssemos os governadores e os prefeitos que defendem as orientações da OMS [Organização Mundial da Saúde]".
"Que não permitíssemos que, em lugar de medicamentos testados, se advogasse a utilização de placebos ou falsos medicamentos", disse, sem citar a cloroquina. "Era preciso que se levasse a pandemia a sério."
Quando citou a cifra de mortos, ele chamou a posição do Brasil, só atrás dos Estados Unidos em número de vítimas da Covid-19, de "segundo lugar em um campeonato macabro".
Lei de responsabilidade social
Gilmar Mendes disse que a crise do coronavírus fez o país descobrir 11 milhões de "invisíveis", indivíduos que estavam à margem de qualquer política de estado, e provou como o país falhou em tornar realidade garantias previstas na Constituição de 1988, como o direito à moradia e o acesso universal a água e esgoto.
Como exemplo, o ministro afirmou que moradores de favelas do Rio não puderam cumprir recomendações simples de médicos durante a pandemia, como lavar as mãos ou isolar familiares com sintomas de Covid, porque vivem em moradias insalubres, sem acesso a serviços de água e esgoto.
Gilmar pregou o que deve ser a agenda do país no pós-coronavírus: "defesa intransigente da democracia, defesa intransigente dos direitos fundamentais e defesa intransigente dos direitos sociais."
"[Depois que a pandemia tiver sido superada], precisamos discutir uma lei de responsabilidade social que nos permita medir a ação governamental no tempo e [...] superar este quadro que nos enche de vergonha", defendeu.
No final, o ministro afagou aos seus anfitriões de live: "Na minha longa vida em que eu tenho mais passado que futuro, vou levar esse dia na minha memória para sempre". Gilmar completa 65 anos em dezembro.
João Paulo Rodrigues retribuiu com um gesto gentil, pedindo uma salva de palmas ao ministro e chamando a noite de "histórica".
"Quero agradecer a todos que estão aqui, aos muitos que estão há muito tempo no nosso meio e aos outros que estão nos conhecendo agora", disse.
Pouco depois, as cerca de 800 pessoas (majoritariamente políticos de oposição e militantes de movimentos sociais) foram desconectando do aplicativo de videoconferência Zoom.
A íntegra pode ser vista aqui.