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Base de acusação contra Glenn é áudio que não indica crime de jornalista

Conclusão de procurador de que jornalista "auxiliou, incentivou e orientou grupo criminoso" não tem respaldo em prova produzida pela Polícia Federal.

Ao formalizar a acusação contra Glenn Greenwald de ter participado da invasão de celulares de autoridades, o procurador da República Wellington Divino de Oliveira se baseou em um arquivo de áudio que não indica crime por parte do jornalista americano.

O arquivo registra uma conversa entre Luiz Henrique Molição, apontado como um dos responsáveis de captar ilegalmente os diálogos na nuvem do aplicativo Telegram, e Greenwald em junho de 2019 – depois, portanto, que os arquivos de mensagens que deram origem ao escândalo da Vaza Jato já estavam em poder do site The Intercept.

A conversa está registrada na Informação nº 30/2019/NO/CGI/DICINT/CGI/DIP/PF, produzida pela Polícia Federal de Brasília. A transcrição foi realizada a partir de um áudio localizado pela PF em um dos computadores apreendidos durante a operação Spoofing.

O áudio não tem data, mas é provável que a conversa tenha ocorrido na primeira semana de junho de 2019, antes do The Intercept publicar as primeiras reportagens baseadas em mensagens trocadas pelo ministro Sergio Moro, quando ele ainda era juiz da Lava Jato, e o chefe da força-tarefa da Procuradoria, Deltan Dallagnol.

Naquele momento, circulava na imprensa que houve invasão do celular de Moro e Molição procurou Glenn perguntando se deveria baixar da nuvem do Telegram diálogos de outras pessoas que ele havia interceptado.

Molição cita que teria mensagens do Telegram pertencentes ao apresentador Danilo Gentili e ao vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM-SP) e cita que tem medo que várias pessoas que tiveram mensagens roubadas pelo grupo apaguem os diálogos das nuvens do aplicativo, antes que o grupo fizesse o download.

O caso tem um forte componente político. O autor da denúncia é um procurador visto como próximo ao ministro Sergio Moro, um dos afetados pelo escândalo da Vaza Jato, desdobramento das reportagens do The Intercept.

Wellington Divino de Oliveira é o mesmo procurador que havia denunciado o presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, no ano passado, por calúnia depois deste ter criticado Moro – denúncia que foi rejeitada pela Justiça Federal este ano.

A transcrição do áudio:

MOLIÇÃO: A gente também queria saber a sua opinião a respeito de algo. Como, assim que você publicar os artigos, todo mundo vai excluir as conversas, todo mudo vai excluir o Telegram, a gente queria saber se você, o que você recomenda fazer. A gente tem alguns nomes separados, a gente pegar esse final de semana já puxar a conversa de todo mundo ou deixar quieto por um tempo. Porque as... tem tem pessoas que tem um número antigo, ou seja, nem tem mais o número, que dá pra puxar as conversas que tem.

Na resposta, Glenn não pede novos diálogos nem opina sobre o que o grupo deveria fazer com as conversas captadas de outras pessoas, além daquelas que o The Intercept já tinha recebido. E diz que vai manter os registros das conversas com o grupo para se resguardar de acusações de ter participado da invasão, mostrando que não encomendou nenhuma mensagem.

GLENN GREENWALD: Sim. Olha, nós vamos, por que que vai acontecer? É que com certeza eles vão tentar acusar a gente que nós participamos na, na no hack. Eles vão tentar acusar que “nós formam” parte dessa ah... tentativa de hackear. Eles vão com certeza acusar. Então para mim, mantendo as conversas, são as provas que você só falou com a gente depois você tinha tudo. Isso é muito importante para nós como jornalistas para mostrar que nossa fonte só falou com a gente depois que ele já tinha tudo.

MOLIÇÃO: Sim.

GLENN GREENWALD: Mas nós não vamos oferecer disso, nós não vamos baixar isso para esse encontro, mas nós precisamos manter isso. Mas você está perguntando se você deve fazer?

O hacker então insiste perguntando se ele baixar novas conversas vai atrapalhar a publicação de reportagens do The Intercept. Glenn responde que a sua obrigação é somente resguardar a identidade da fonte que lhe repassou os arquivos que já tem. Ele informa a Molição que já tem todos os documentos salvos.

MOLIÇÃO: Não, é que a gente não quer chegar a prejudicá-lo de alguma forma. Mas a gente pede a sua opinião.

GLENN GREENWALD: Sobre mais exatamente o quê?

MOLIÇÃO: Sobre puxar todas essas pessoas nesse final de semana, pra já manter as conversas salvas que a gente tiver, ou esperar. Porque há chances de assim que você liberar a notícia, todo mundo, todos eles que tem as conversas antigas que possam ter alguma coisa, eles vão apagar.

GLENN GREENWALD: Entendi. Então, nós temo... é... vou explicar, como jornalistas, e obviamente eu preciso tomar cuidado como com tudo o que estou falando sobre “essa assunto”, como jornalistas, nós temos uma obrigação ética para “co-dizer” (?) nossa fonte.

MOLIÇÃO: Sim.

A conversa prossegue com Glenn falando da proteção da identidade da fonte e opina que o não vê "motivos para vocês manter nada". Mas ressalva que isso é uma escolha de Molição e não dele, Glenn, e diz que a decisão de apagar não atrapalha a publicação pelo Intercept.

GLENN GREENWALD: Isso é nossa obrigação. Então, nós não podemos fazer nada que pode criar um risco que eles podem descobrir “o identidade” de nossa fonte. Então, para gente, nós vamos... como eu disse não podemos apagar todas as conversas porque precisamos manter, mas vamos ter uma cópia num lugar muito seguro... se precisarmos. Pra vocês, nós já salvamos todos, nós já recebemos todos. Eu acho que não tem nenhum propósito, nenhum motivo para vocês manter nada, entendeu?

MOLIÇÃO: Sim.

GLENN GREENWALD: Nenhum... Mas isso é sua, sua escolha, mas estou falando e, isso não vai prejudicar nada que estamos fazendo, se você apaga.

MOLIÇÃO: Sim. Não, era mais, era mais uma opinião que a gente queria mesmo, pra gente fazer mais pra... mais pra frente.

PF NÃO VIU CRIME DE JORNALISTA NO ÁUDIO

Embora o diálogo mostre que Glenn afirmou que o que fazer com os arquivos que não estavam em seu poder cabia a Molição, este foi o trecho usado pelo procurador Wellington Oliveira para concluir que o jornalista "auxiliou, incentivou e orientou, de maneira direta, o grupo criminoso, DURANTE a prática delitiva, agindo como garantidor do grupo, obtendo vantagem financeira com a conduta aqui descrita."

A acusação não aponta que novos arquivos o jornalista obteve além dos que ele já tinha conseguido com a sua fonte nem qual seria a "vantagem financeira" ao longo das 95 páginas da denúncia.

Ao se deparar e analisar a mesma transcrição contida na Informação nº 30/2019, o delegado Luís Flávio Zampronha chegou a uma conclusão diferente: "Foi também encontrada durante as investigações outra evidência da adoção
por Glenn Greenwald de uma postura cuidadosa e distante em relação à execução das invasões, bem como da escolha de eventuais alvos pelos criminosos."

No relatório de 177 páginas, o delegado não imputou nenhuma conduta ilegal a Glenn Greenwald e afirmou que não aprofundou questões técnicas da investigação junto ao próprio jornalista, como por exemplo a checagem da versão dada pelos alvos da Spoofing sobre como os primeiros arquivos foram repassados, em virtude da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 601 em virtude da proteção constitucional da liberdade de imprensa.

Sobre o mesmo áudio no qual a PF não viu crime do jornalista, o procurador Wellington Oliveira interpretou uma coisa completamente diferente: Glenn Greenwald "sabia que o grupo não havia encerrado a atividade criminosa e permanecia realizando condutas de invasões de dispositivos informáticos e o monitoramento ilegal de comunicações e buscou criar uma narrativa de 'proteção à fonte' que incentivou a continuidade delitiva."

PROCURADOR DISTORCEU DIÁLOGOS, DIZ ESPECIALISTA

Pela denúncia oferecida pelo procurador Wellington Divino à Justiça, o jornalista Glenn Greenwald poderia pegar uma pena máxima de 683 anos. Isso porque foi a ele atribuído 126 crimes interceptação telefônica ou telemática, – com pena máxima de quatro anos. Também lhe foram imputados 176 vezes de violação de segredo profissional, com pedido de aumento de pena, que pode levar a um ano e meio de detenção para cada delito. Por fim, o Ministério Público ainda o enquadrou em associação criminosa, que pode dar 3 anos de cadeia.

Segundo Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela USP (Universidade de São Paulo), “a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal em face de Gleen Greenwald é um verdadeiro absurdo jurídico. A narrativa acusatória distorce o teor das conversas mantidas entre o jornalista e as suas fontes, para artificialmente inseri-lo no contexto das práticas delitivas. Verdadeiro absurdo que viola valores essenciais da democracia, em especial, o direito de liberdade de imprensa. Há, ainda, uma tentativa incontestável, por parte da acusação, de inflar a acusação oferecida, atribuindo ao jornalista a prática de uma infinidade de crimes, sem qualquer tipo de embasamento fático”.

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) criticou a denúncia do procurador.

"A denúncia contra Glenn Greenwald é baseada em uma interpretação distorcida das conversas do jornalista com sua então fonte. Tem como único propósito constranger o profissional, como o texto da denúncia deixa ver: por duas vezes, o procurador refere-se a Greenwald com o termo jornalista entre aspas, como se ele não se qualificasse como tal - e como se coubesse a um membro do MPF definir quem é ou não jornalista", diz trecho da manifestação.

E conclui: "É um absurdo que o Ministério Público Federal abuse de suas funções para perseguir um jornalista e, assim, violar o direito dos brasileiros de viver em um país com imprensa livre e capaz de expor desvios de agentes públicos. A Abraji repudia a denúncia e apela à Justiça Federal para que a rejeite, em respeito não apenas à Constituição, mas à lógica."

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