“Até gente do RH chorava e se dizia impotente”, diz ex-diretora da revista Glamour

    Mônica Salgado diz que “existe uma visão tristemente romanceada de abusos de poder e assédio moral na indústria do jornalismo de moda”.

    Por anos, Mônica Salgado foi um dos rostos das Edições Globo Condé Nast. A jornalista, que trabalhou na editora a partir de 2007, subiu todos os degraus da escada profissional de uma redação. Chegou a ser redatora-chefe da Vogue, e depois criou um projeto editorial em que depositou sua personalidade e seu talento: a versão brasileira da revista Glamour, lançada em abril de 2012. Salgado dirigiu a revista por cinco anos, até se desligar da Globo Condé Nast, em março de 2017, um ano após passar a se reportar a Daniela Falcão, a diretor-geral da Globo Condé Nast no Brasil, que é acusada de assédio por ex-funcionários ouvidos pelo BuzzFeed News.

    Depois de sair da editora, Mônica foi repórter do Vídeo Show, na TV Globo, e se tornou colunista do jornal Zero Hora, além de dar palestras e conduzir eventos. Em entrevista por e-mail, Salgado afirma que o clima na redação era de “toxicidade” e que os funcionários tinham “a sensação geral de que não valia a pena levar as reclamações em relação a Daniela Falcão adiante”.

    Leia os principais trechos abaixo:

    Como era o clima da redação como um todo, e como ele mudou conforme o passar dos anos que você dedicou à empresa?

    A Vogue foi meu primeiro trabalho fixo em redação, e hoje penso que a ausência de outras referências profissionais consistentes pode ter me deixado um tanto míope. Além disso, existe toda uma visão tristemente romanceada de abusos de poder e assédio moral na indústria do jornalismo de moda – não são poucos os relatos cercando figuras míticas poderosas de ontem e hoje, de Regina Guerreiro a Anna Wintour, eternizada em “O Diabo Veste Prada”. É como se a genialidade criativa conferisse licença para diminuir e controlar o outro de maneira perversa.

    Infelizmente, não foi uma nem duas vezes que, em reunião de diretoria, Daniela, já como diretora da empresa, usou palavras fortes para desmerecer o trabalho (ou a capacidade intelectual) dos diretores, interromper suas explanações, diminuir seus feitos. Eram momentos constrangedores e desconfortáveis para todos.

    Nem o departamento de RH – que, nas vezes em que acionei, não me pareceu ter uma atuação isenta – nem os superiores hierárquicos deram mostras reais de que condenavam os atos. A sensação geral entre a equipe era de que não valia a pena levar as reclamações em relação a ela adiante, porque os antecedentes provavam que nada mudaria. E o medo de retaliação era real.

    O BuzzFeed News ouviu dezenas de relatos de mal estar na redação, pessoas chorando no banheiro e gritos no meio das baias ou em salas de chefia. Isso de fato existia? É uma situação que surgiu em determinado momento, ou sempre existiu?

    De fato, respirávamos toxicidade. Hoje isso é muito mais claro pra mim do que à época. Uma cultura tensa, pesada e extremamente competitiva – repito esta palavra porque existia uma competição não-saudável estimulada entre os títulos que teve um custo emocional altíssimo para mim e minha equipe. A Vogue e sua gestora eram sempre citadas como "cases" de sucesso internamente, exemplos a serem seguidos em todas as instâncias.

    No entanto, gostaria de fazer um parênteses aqui. Minha avó sempre dizia que todo mundo é o melhor tudo até ser. E penso que isso vale para "ser chefe". Todo mundo é o melhor até ser. Tornar-se chefe coloca em xeque muitas das coisas boas que a gente julgava ser (porque é um contexto de pressão, cobrança por resultados, responsabilidades perante a equipe), enquanto traz à tona muita coisa ruim que a gente criticava nos nossos chefes.

    Não nego que, quando assumi a Glamour, me peguei repetindo comportamentos, sendo provavelmente amada e odiada, respeitada e temida, elogiada e tolerada. Talvez tema de almoços, sessões de terapia, eventualmente provocando choros no banheiro ou na sala do RH. Pressão, inexperiência e reação à cultura tóxica vigente podem até justificar algumas falhas, porém não me eximem da responsabilidade de ter "tocado" (nem sempre positivamente) a vida das pessoas que trabalharam comigo.

    Como a ascensão de Daniela Falcão na estrutura da empresa afetou as práticas jornalísticas das revistas?

    De maneira inquestionável. Seus grandes trunfos sempre foram editoriais – ela não tinha intimidade com a área comercial, muito menos skills de gestora. Por não ter um perfil businesswoman, negociava o que conhecia: o editorial.

    Quando ela foi alçada ao posto de diretora geral, um de seus primeiros feitos foi "viabilizar" um editorial de moda de Carnaval na Glamour (edição fevereiro de 2017). Ela tomou a frente das negociações com as marcas, pessoalmente "vendeu" product placements – para desespero do comercial: mais de uma vez ouvi deles que era preocupante que ela negociasse por X o que eles levaram anos para vender por 3X e que, depois do precedente aberto, o departamento jamais resgataria sua autoridade perante as marcas. Para eles, era o início do fim. Vale lembrar que a autoridade da Daniela era inquestionável – pelo cargo que ocupava e pelo aval dos superiores. Ela tinha o hábito de passar como um trator por cima das pessoas, ignorando hierarquias, atropelando processos e tomando sozinha suas decisões, que então eram comunicadas aos envolvidos.

    Pois bem: ela negociou as páginas com as marcas – àquela altura, a revista precisava bater a meta comercial do mês e ela estava imbuída da missão de chegar ao número (não importando a que custo), recém-chegada ao cargo que era. Não acompanhei os pormenores das negociações, mas era informada pela minha equipe sobre o andamento do editorial. Havia marcas de moda, de beleza e de bebida alcoólica envolvidas. Enquanto as marcas sabiam exatamente no que estavam investindo e o que receberiam como entrega, a equipe externa envolvida – profissionais de beleza e modelos – não tinha ideia de que se tratava de um publi (publi não definido como tal para o leitor). Quando a matéria foi publicada, fomos procurados por uma agência de modelos que alegava que uma de suas profissionais não tinha idade para fazer propaganda de bebida alcoólica, rótulo aparecendo e tudo (afinal, tratava-se de um publi). Não me surpreende que a questão tenha sido resolvida sem desdobramentos éticos ou jurídicos. Àquela altura, Daniela tinha o mercado nas mãos – ela sempre dominou o mercado pela força e pelo medo, confiando no poder que seu cargo lhe garantia.

    Havia uma cultura de diálogo dentro da empresa, para o caso de alguém se sentir desconfortável com alguma situação profissional?

    A sensação que eu tinha (note bem: sensação) é que esse diálogo existia quando ela não era a protagonista das questões. Para o "baixo clero", as regras valiam. Confirmo com dois argumentos.

    Primeiro: já houve profissional de RH chorando comigo em sua sala, confessando se sentir impotente e injustiçada tanto quanto nós, que recorríamos ao departamento em busca de ajuda.

    Segundo: já recebi algumas puxadas de orelha deste mesmo RH, inúmeras alegações de que eu feria o código interno com minhas práticas – certa vez, e este é apenas um exemplo, recebi uma chamada formal da diretoria-geral por haver postado uma foto (e marcado o local) de minhas férias num empreendimento no Sul do país. Detalhe: minha família tem apartamentos no empreendimento desde 1999. Como se não houvesse questões mais relevantes com que se preocuparem, alegavam se incomodar com o fato de eu ter feito uma marcação de localização nas fotos. Diante de todos os descalabros que aconteciam ali, diante dos nossos narizes, a chamada me deixou perplexa.

    O que a levou a deixar um cargo de chefia numa empresa de renome mundial?

    Depois de cinco anos na Vogue e cinco na Glamour, realmente sentia já ter cumprido minha missão pessoal e profissional ali. Eu estava bem machucada internamente – sentia-me perseguida, injustiçada, esgotada e num estado de angústia permanente. Como se nada nunca fosse suficiente – nem a entrega, nem a dedicação, nem a paixão que dediquei ao título. E, não menos importante, os resultados. Glamour foi inegável sucesso de público (vendas e engajamento) e crítica (mercado publicitário).

    Quando pedi meu desligamento, seis meses antes de efetivamente sair, atendendo a pedidos da própria Daniela, estava tudo desgastado de maneira irreversível: minha relação com ela, com a companhia, com minha missão, como o jornalismo como estava sendo trabalhado por ali.

    Reverencio o que vivi ali, porque graças àqueles episódios sou quem sou, tenho gratidão e respeito por muitas histórias, oportunidades e pessoas incríveis com quem convivi, mas te digo que precisei de muita terapia e ansiolíticos para juntar meus caquinhos emocionais. Juntei. E espero que, após a publicação desta matéria, muitas pessoas juntem também.

    O QUE DIZ A EMPRESA EDIÇÕES GLOBO CONDÉ NAST:

    As Edições Globo Condé Nast e Daniela Falcão foram procuradas pelo BuzzFeed News desde a semana passada para comentar as alegações específicas dos ex-funcionários e ex-colaboradores da Vogue e da Glamour. Os contatos foram feitos por e-mail, WhatsApp e telefone. Após os primeiros contatos, a empresa pediu datas específicas das alegações dos ex-funcionários ouvidos pela reportagem, a fim de verificá-las. A informação foi enviada pela reportagem.

    Em uma nota enviada, a empresa afirmou que “não toleramos comportamentos abusivos ou qualquer forma de assédio em nossas equipes” e que há um canal de Ouvidoria para o recebimento de denúncias e uma área de Compliance independente. A empresa não negou nem confirmou as alegações de abuso e preferiu não responder a alegações específicas.

    A íntegra da nota do grupo é a seguinte:

    “A Edições Globo Condé Nast oferece a seus colaboradores e a quaisquer terceiros, um canal de Ouvidoria para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo e uma área de Compliance independente, que se reporta ao Conselho de Administração do Grupo Globo. Não toleramos comportamentos abusivos ou qualquer forma de assédio em nossas equipes e todos os relatos são criteriosamente apurados assim que tomamos conhecimento, com a garantia completa de sigilo de todos os envolvidos no processo. Não fazemos comentários sobre as apurações e sempre tomamos as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador.”

    “Além disso, nossas publicações se guiam por princípios editoriais claros e públicos, que consideram, entre outras premissas, uma distinção clara dos conteúdos comerciais. A Editora Globo Condé Nast (EGCN) reafirma o seu compromisso em combater práticas que estejam desalinhadas com seus princípios éticos.”

    A Condé Nast também foi procurada nos Estados Unidos. A firma global detém 30% de participação da empresa Edições Globo Condé Nast, que edita Vogue e Glamour no Brasil. Os 70% restantes pertencem ao Grupo Globo. A íntegra da manifestação:

    “A Condé Nast é acionista minoritária em uma operação conjunta com o Grupo Globo no Brasil. Como acontece com todos os nossos parceiros de negócios e licenciados, trabalhamos com eles para ajudar a garantir que nossa força de trabalho global e padrões editoriais sejam mantidos, incluindo a adesão a um ambiente de trabalho sustentável que priorize a diversidade e a inclusão, o respeito e o bem-estar. Enquanto examinamos mais profundamente as operações de negócios no Brasil, continuaremos a instar o nosso parceiro à responsabilidade pela criação de um ambiente de excelência para nossos funcionários, o nosso público e os nossos clientes.”

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