O que especialistas em reprodução têm a dizer sobre comentários na internet sobre aborto

    “Não quer ter filhos? Não transe” – Quatro especialistas respondem aos comentários mais comuns de internet em reportagens sobre aborto na Austrália.

    Os comentários na internet a respeito de notícias sobre aborto e as políticas de aborto na Austrália são geralmente bem parecidos.

    Por isso, o BuzzFeed News pediu ao diretor do maior serviço de aconselhamento de natalidade da Austrália, ao chefe da maior clínica de aborto da Austrália, à coordenadora de educação médica de um serviço de saúde sexual e à diretora de Planejamento Familiar do Estado australiano de Nova Gales do Sul que respondessem alguns dos comentários mais comuns em reportagens sobre aborto no país.

    No Brasil, o aborto praticado por um médico só não é punido legalmente quando a mulher foi vítima de violência e quando a mãe corre risco de morte, como consta no artigo 128 do Código Penal Brasileiro, de 1940. Em 2012, segundo uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o direito também foi estendido para casos em que, comprovadamente, o feto é anencéfalo (sem cérebro).

    Abaixo, uma lista com os comentários mais comuns – que aliás são bem parecidos com o que costumamos ver no Brasil – e, na sequência, o que os médicos disseram.

    "As mulheres têm total controle sobre quando ou onde engravidam."

    Philip Goldstone, diretor-médico da Marie Stopes International, a maior clínica de serviços de interrupção de gravidez na Austrália, disse que a maioria das mulheres que buscam realizar o aborto utilizam algum método contraceptivo no momento do sexo, mas, ainda assim, a ideia de que a mulher é "muito preguiçosa ou ignorante em relação aos métodos contraceptivos" persiste.

    "Mais da metade de todos os abortos são realizados em pacientes que estavam ativamente tentando não engravidar", disse Goldstone ao BuzzFeed News. "Nenhum método contraceptivo é 100% eficaz e o risco de falha aumenta caso eles não sejam utilizados corretamente ou de forma consistente."

    Goldstone disse que esses comentários ignoram também o fato de que são necessárias duas pessoas para uma gravidez. "Mas temos o costume de culpar só a mulher por isso."

    "Em muitos casos, incentivar jovens a praticar a abstinência como forma de prevenção da gravidez é, na verdade, o que leva à gravidez na adolescência, já que não são ensinadas práticas sexuais seguras."

    Kate Marsh, do serviço de aconselhamento Children by Choice em Queensland, disse que a crença de que a relação sexual entre um homem e uma mulher visa apenas o propósito da procriação não é mais "amplamente observada". "A imensa maioria das australianas utiliza ao menos uma forma de contracepção – 70% delas, segundo a maioria das pesquisas", disse Marsh.

    "Não há um método que seja 100% eficaz e também existem mulheres para as quais o uso de métodos contraceptivos é comprometido ou inexistente devido à violência doméstica e sexual ou à coerção reprodutiva."

    Marsh mencionou estimativas da Organização Mundial da Saúde que sugerem que, mesmo que todo casal heterossexual do mundo utilizasse métodos contraceptivos e de forma perfeita toda vez que fizesse sexo, ainda assim haveriam seis milhões de gestações não planejadas todos os anos. "Eles também estimam que cerca de 33 milhões de mulheres vivenciam uma gravidez não planejada utilizando métodos contraceptivos todos os anos ao redor do mundo."

    "As pessoas que abortam deveriam antes fazer um ultrassom obrigatório para ver o bebê."

    A coordenadora de educação médica da Rede de Informação e Ensino de Saúde Sexual do Sul da Austrália (SHINE SA), Amy Moten, disse que quando uma pessoa se apresenta para realizar um aborto, já considerou todas as opções. "Mostrar um ultrassom não vai mudar a decisão delas e é apenas uma forma de punir as mulheres por interromperem a gravidez", disse Moten.

    "No momento da gestação em que a maioria dos abortos são realizados na Austrália (nas primeiras nove semanas), o feto não se assemelha ainda a um bebê."

    Goldstone destacou que, em estudos onde a mulher viu um ultrassom antes do aborto, 98,4% das pacientes decidiram seguir adiante com o procedimento mesmo assim. "Aquelas pessoas que decidiram não seguir adiante já tinham expressado incerteza a respeito do procedimento, portanto não fica claro se o ultrassom realmente influenciou suas decisões", disse ele.

    Goldstone disse também que nem todas as pessoas que fizeram um aborto estão lá por causa de uma gravidez não planejada. "Pode ter sido seu primeiro ou terceiro filho, mas em algum momento houve uma complicação de saúde ou anormalidade e a pessoa não pode prosseguir com a gravidez", disse ele.

    "Obrigar as mulheres a olharem o ultrassom da criança que elas querem, mas não podem ter, seria algo particularmente cruel."

    Marsh disse que 70% das clientes na Children by Choice que receberam ajuda financeira já tinham filhos. "Ultrassons obrigatórios não mudam a mente das mulheres — porque, ao contrário do que alegam os ativistas antiaborto, elas sabem exatamente o que estão fazendo."

    "A criminalização age como uma barreira e a descriminalização incentiva o aborto."

    A diretora médica da Clínica de Planejamento Familiar em Nova Gales do Sul, Deborar Bateson, disse que onde existem barreiras (legais ou financeiras) para o acesso ao aborto, ocorrem mais abortos em clínicas clandestinas e por conta própria.

    "O número total de abortos continua o mesmo, mas evidências sugerem que as mulheres recorrem a métodos inseguros para realizar o aborto, incluindo métodos caseiros", disse ela. "Assim que a mulher toma a decisão individual e pessoal de realizar um aborto, em geral, ela encontrará uma maneira de conseguir executá-lo."

    Marsh disse que algumas das menores taxas de aborto no mundo são de países europeus, onde o aborto é seguro, legal e acessível (assim como os métodos contraceptivos). Já as maiores taxas são encontradas em países onde as leis são altamente restritivas: "Você não pode banir o aborto; você pode apenas banir o aborto seguro."

    Segundo Moten: "Os abortos acontecem de qualquer forma nos países onde são proibidos, mas acabam levando a problemas maiores de saúde, incluindo a morte das mães. Em países como a Romênia, onde o aborto foi legalizado nos anos 90, houve uma diminuição nas mortes maternas resultantes de todas as causas."

    "As mulheres estão usando o aborto como sua principal forma de controle de natalidade."

    Goldstone disse que muito da discussão sobre "aborto como método contraceptivo" surge de um equívoco na compreensão do uso da pílula do dia seguinte. "Muitas pessoas acreditam erroneamente que a 'pílula do dia seguinte' é uma forma de aborto, quando na verdade não é", disse ele.

    "A pílula do dia seguinte não interrompe a gravidez, ela previne que ocorra a concepção ao evitar ou atrasar que seu corpo libere um óvulo. A pílula do dia seguinte é essencialmente uma dose concentrada de um dos hormônios presentes nas pílulas de uso oral."

    Há também a crença de que as mulheres estão fazendo uso do aborto cirúrgico ou médico para interromper a gravidez como forma de controle de natalidade, disse ele, mas a maioria das mulheres que realizam o aborto já utiliza alguma forma de método contraceptivo.

    Bateson: "Não há provas que sugerem que as mulheres utilizam o aborto como método contraceptivo."

    Moten: "Há métodos contraceptivos muito mais fáceis, acessíveis e baratos."

    "As mulheres devem prosseguir com suas gestações e colocar as crianças para adoção."

    Goldstone lembra que uma gravidez indesejada "pode significar uma gravidez durante o ensino médio, cursinho ou faculdade; fazer provas e obter boas notas quando se sofre de enjoo matinal; correr para a consulta com o médico e não se atrasar para a aula ou o trabalho; tentar administrar e bancar uma nova dieta caso ocorra diabetes gestacional; tentar manter seu emprego e criar a criança que você já tem quando não consegue dormir devido à gravidez; tentar se manter em pé por oito horas em uma loja quando seus pés estão permanentemente inchados e doloridos por cinco meses."

    Kate Marsh disse que os ativistas antiaborto frequentemente reclamam da queda brusca na taxa de adoções, mas que isso não é culpa do melhor acesso aos métodos contraceptivos e serviços de aborto — na verdade, é porque a Austrália não oferece mais "a remoção forçada e o encaminhamento de bebês das mães solteiras ou 'fora dos padrões' para a adoção", disse ela. "O trauma causado por essas práticas – que ainda estavam em vigor na Austrália até os anos 70 – persiste e pode influenciar a atitude das gerações mais jovens em relação à adoção."

    "Legalizar o aborto equivale a perdoar o Holocausto."

    "Comparar qualquer coisa ao Holocausto geralmente significa que você não é capaz de estabelecer um debate lógico e razoável, recorrendo a uma linguagem sentimentalista e sensacionalista para defender seu argumento", disse Moren.

    "O Holocausto não se compara a pessoas buscando escolhas reprodutivas que são seguras e legais."

    Bateson disse: "Mulheres fazendo escolhas reprodutivas individuais não são a mesma coisa que o genocídio deliberado e patrocinado pelo Estado."

    Philip Golstone disse que comparar qualquer coisa ao Holocausto é incrivelmente insensível e de "muito mal gosto".

    "O aborto é uma decisão tomada em última instância por uma pessoa com base em como uma gravidez pode impactar sua vida, e algumas vezes a de sua família inteira. Não é a erradicação sistemática de um grupo inteiro de pessoas com base em suas crenças, raças ou sexualidades."

    "É preciso que se ensine mais sobre métodos contraceptivos."

    Os quatro especialistas concordaram com esse comentário. "A única coisa que certamente diminui as taxas de aborto é a educação e o acesso aos métodos contraceptivos," disse Goldstone.

    "As mulheres não estão recebendo apoio, aconselhamento ou opções que as incentivem a continuar suas gestações."

    "Nós oferecemos pré e pós aconselhamento a todas as pacientes na Marie Stopes, e descobrimos que apenas um quarto delas vai escolher utilizar esse serviço", disse Goldstone.

    "A maioria das mulheres já tomou sua decisão antes de marcar uma consulta para realizar um aborto, falando frequentemente antes com seu parceiro, família, amigos e médico particular."

    Bateson mencionou um estudo de 2013 que constatou que quase todas as mulheres que solicitaram um aborto estavam certas de suas decisões e não queriam passar por esse aconselhamento.

    "Zonas de acesso seguro promovem o aborto."

    Em algumas partes da Austrália, existem normas que impedem que manifestantes protestem e abordem mulheres dentro de certa distância de uma clínica de aborto, para protegê-las de assédio e intimidação.

    "Se evitar o assédio equivale a promover, então não há um único serviço de saúde ou produto na Austrália que não esteja sendo promovido", disse Marsh.

    Goldstone disse que essas zonas de exclusão promovem um ambiente mais seguro para as mulheres. "Diversos estudos foram realizados a respeito do efeito dos manifestantes nas clínicas de aborto e todos eles concluem que o único impacto que eles trazem é traumatizar as mulheres nessas clínicas", disse ele.

    "Eles não impedem elas de ir, eles não influenciam o processo de tomada de decisão, apenas colocam as mulheres em uma posição de angústia e sofrimento."

    "Descriminalizar o aborto permite que 'bebês sejam mortos aos 9 meses'."

    "Este comentário é completamente falso", disse Bateson. "A maioria dos abortos acontece antes de 12 semanas de gestação", disse ela.

    "Abortos tardios são bem raros, sendo que a estimativa é que cerca de 1% se enquadram nessa categoria." Abortos tardios ocorrem em um ambiente hospitalar com "circunstâncias extremas, desafiadoras e complexas", disse ela.

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    Este post foi traduzido do inglês.

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