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Como funciona, por dentro, um protesto dos caminhoneiros

Acampamento de caminhoneiros na BR-040, em Goiás, tem solidariedade de paróquia, indignação com os custos da vida na estrada, pregação de intervenção militar... e nem sinal de volta ao trabalho no 9º dia da greve.

Eram 11h da manhã desta terça-feira (29) quando um pequeno caminhão de mudanças tentou passar pela manifestação de caminhoneiros no BR-040, próximo de Luziânia (GO), a 45 km do centro de Brasília.

No local, pelo menos duas centenas de caminhões ocupavam as laterais da pista. Parte estava enfileirada, parte estacionada em terrenos baldios nas imediações.

No canteiro central, entre as vias da BR, uma tenda servia de base para os motoristas, familiares e apoiadores do movimento que exerciam algum tipo de função na manifestação.

A poucos metros, também no canteiro, outra tenda abrigava um veículo da Polícia Militar.

Alguns dos carros que circulavam pela pista buzinavam em sinal de apoio aos caminhoneiros. A maioria passava em silêncio e, vez ou outra, alguém xingava os manifestantes antes de acelerar para sair das proximidades.

Ao sinal dos caminhoneiros na pista, o veículo de mudança foi orientado a entrar no corredor que se formou entre os caminhões que estavam num dos terrenos baldios. Lá, o motorista teve de estacionar e descer.

Ao presenciar a cena, fui até o estacionamento improvisado para falar com o motorista — que desembarcou contrariado, dizendo que queria seguir viagem. No caso, ir para casa, próximo dali.

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Antes mesmo de alcançar o motorista, um dos caminhoneiros se aproximou, e imediatamente outro, depois mais um e ainda outro. Em tom ameaçador, perguntavam quem eu era, e se de fato era um jornalista ou um policial infiltrado em meio aos caminhoneiros.

Um dos manifestantes se posicionou atrás de mim. E, a cada tentativa de ficar frente a frente com ele, o caminhoneiro rodava e seguia nas minhas costas.

Após desistir de sair da incômoda posição, e ao mostrar as credenciais de jornalista, uma conversa mais amena foi travada com os manifestantes.

O caminhoneiro que se negava a ficar frente a frente comigo falou e meio que explicou porque se postava atrás de mim:

"É, percebemos que você é repórter, está nos filmando escondido com essa muleta."

A muleta, no caso, não é uma gíria, mas o verdadeiro instrumento hospitalar, que estava sendo usado para auxiliar na minha caminhada devido a uma torção no tornozelo.

Com a cena, já era possível perceber a paranoia de parte dos caminhoneiros que participam da manifestação naquele ponto de aglomeração.

Com a abordagem dos manifestantes, quem mais falou foi Sócrates Gonçalves. Morador da região, usava uma pulseira azul, dessas que são distribuídas em shows.

Dizendo-se um militante do PT desencantado com Lula e Dilma Rousseff, explicou que os caminhoneiros estavam ressabiados com a imprensa — em especial com a Rede Globo, que, na opinião deles, tentava insuflar a população contra o movimento divulgando inverdades.

Enquanto a conversa fluía, um outro motorista e seu ajudante descarregavam carne in natura de um dos caminhões que estavam ali estavam parados.

Carne equivalente a um boi foi jogada numa kombi para seguir até um açougue de Luziânia. O restante ficou no veículo.

Com poucas palavras, o motorista disse que gostaria de seguir viagem, mas foi barrado. Sobre a carga, disse que poderia perder parte da carne. Receoso, não permitiu que fotos de seu caminhão fossem feitas nem quis dar entrevistas.

"Espero que você entenda", disse.

Do estacionamento improvisado, no chão de terra, fiz uma caminhada de 40 metros até a rodovia e um pouco adiante, atravessando a pista rumo ao canteiro central.

Sócrates me acompanhou. Disse que seria bom pois os ânimos ainda estariam exaltados entre os manifestantes. Ele também dizia esperar que eu retratasse a verdade sobre o movimento.

No canteiro, na tenda de apoio, um balcão servia comida. Naquela hora, bolachas e leite.

No centro, uma mesa distribuía as pulseiras que eram usadas pelos manifestantes. As verdes iam para os caminhoneiros, e as azuis, para os apoiadores.

As pulseiras servem para identificar quem é caminhoneiro e quem não é. As verdes dão aos caminhoneiros preferência na alimentação. Só depois, quem usa a azul, como ajudantes e populares, recebem comida.

Sócrates, ele mesmo um apoiador, ajudava na alimentação dos manifestantes. Nos últimos dias, e nesta terça, inclusive, moradores, donos de pequenos comércios e, segundo ele, grandes empresários doavam alimentos para os manifestantes.

Na tenda, alguns cartazes exaltavam o trabalho dos caminhoneiros, outros continham mensagens contra o aborto e algumas faixas ou inscrições nos caminhões pediam uma intervenção militar.

Paróquia montou cozinha industrial e recrutou voluntários para ajudar grevistas

Com muito alimento para processar, e para garantir a higiene adequada na preparação das refeições, a carga era levada para a Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, a 500 metros do ponto de aglomeração na estrada.

Comandada pelo padre polônes Pedro Stepien, a paróquia servia como base para a sobrevivência dos caminhoneiros no local.

Lá, voluntários montaram uma cozinha industrial e preparam as refeições para os caminhoneiros. Café da manhã, almoço e um lanche para a noite. Também era possível tomar banho numa das unidades da paróquia, bem como abastecer garrafas de água no filtro industrial que ali se encontrava.

A coordenação do entreposto era feita pelo casal Fabiano Júlio dos Santos e Cinthia Lima, ambos da Paróquia Guadalupe.

Segundo eles, cerca de mil refeições estavam sendo servidas por dia, além de mais um grande número de marmitas que eram produzidas.

As doações de alimentos são tantas que, segundo os dois, além dos caminhoneiros, era possível garantir a refeição de um lar de idoso, uma casa de recuperação de dependentes e dois orfanatos.

O padre que ajuda os caminhoneiros e prega a intervenção militar

Os voluntários falaram um pouco mais sobre o padre Stepien.

"Ele é da Polônia, tem experiência com o comunismo e não quer que isso aconteça no Brasil. Aqui, ele também trabalha com a conscientização política das pessoas, mas não gosta de políticos envolvidos nisso", explicou Cinthia.

O padre, inclusive, é um apoiador da intervenção militar. Diz que os Poderes instituídos não foram capazes de solucionar as crises do Brasil, baixar impostos e garantir que os combustíveis tivessem um preço razoável. Por isso, diz que a Constituição autoriza a intervenção militar para garantir a ordem e o progresso do Brasil.

Após uma visita à paróquia, onde dezenas de caminhoneiros faziam fila para almoçar, retornei à tenda no canteiro central da avenida.

Já sem Sócrates, que precisou sair após me apresentar ao casal de coordenadores da Guadalupe, alguns dos caminhoneiros se mostraram mais dispostos a conversar.

Quase nenhum deles quis gravar entrevista ou permitiu que fotografias fossem feitas. Mas falaram sobre o movimento, pedidos de intervenção militar, falsas lideranças, o bloqueio de motoristas e sobre os motivos que ainda os levava a seguir com a paralisação depois de o governo anunciar a redução do preço do litro do óleo diesel em R$ 0,46, entre outros benefícios.

No caso da intervenção, parte dos manifestantes dizia que a tomada de poder pelos militares seria a única forma capaz de restabelecer a ordem e acabar com a corrupção.

Alguns se mostravam saudosistas. Diziam que no período militar as caminhoneiros conseguiam sustentar uma família, e que hoje, afirmam, estão pagando para trabalhar.

Um deles lembrou do pai, também caminhoneiro, que dirigiu pelas rodovias durante a ditadura, sem medo de assaltos e recebendo pagamento justo.

Outra parte, no entanto, dizia não entender por que alguns dos companheiros desejavam o retorno dos militares, e acreditavam que aquilo poderia, de alguma forma, desvirtuar o movimento.

Com custo de diesel e pedágios, o que sobra para caminhoneiro às vezes não é suficiente para voltar para casa

Sobre a manutenção da paralisação, Rogério Varella e Arisvaldo Alves Silva se dispuseram a falar sem esconder seus nomes.

Eles tentavam mostrar que, com os preços do diesel, pedágios, manutenção do caminhão e taxas cobradas pelo governo, seja nos postos de checagem ou até mesmo na renovação das carteiras de motoristas, a atividade estava inviabilizada.

"O caminhão roda em média 3 km com um litro de diesel. Um pneu custa cerca de R$ 2.000, e nós usamos 20. Temos de rodar com eles novos, caso contrário o caminhão é apreendido. Pagamos os pedágios, eventualmente tomamos multas, o caminhão quebra, temos que pagar seguro", diz Rogério, enumerando as razões pelas quais aderiu à greve.

"Eu me vejo, muitas vezes, após um frete, com R$ 30 na mão. Não consigo nem sair de local e voltar para casa se não for contratado para levar uma carga para minha cidade. Vocês precisam entender que com o preço atual não sobra nada. Ainda tem a parcela do caminhão. Eu pago por mês R$ 1.200 por mês no meu caminhão, que custa R$ 420 mil."

Argumentando que o governo já havia reduzido o preço do diesel e o custo dos pedágios, questionei o que era preciso para que eles voltassem a trabalhar.

A lista dada foi extensa: redução maior no preço do diesel e no custo de pedágios, arrumar alguma forma de baratear o custo de pneus e peças dos caminhões, redução do preço da renovação da carteira de habilitação, melhorar o valor do frete (o assinado pela MP de Temer eles ainda consideram baixo) e a segurança nas estradas, entre outras.

Sobre os meios para seguir na paralisação, os caminhoneiros disseram que no ponto em Luziânia — com apoio da paróquia e do posto de gasolina em frente à aglomeração — eles conseguem se alimentar e tomar banho.

Além disso, não há custo para o pernoite, uma vez que eles passam à noite na boleia.

Motoristas que querem deixar o movimento são intimidados

Em relação à possibilidade de deixar a manifestação e o apoio das forças de segurança para tal, os caminhoneiros – e isso foi dito por aqueles que não querem deixar o movimento — explicam que a coisa não é bem como a desenhada pelo governo.

As escoltas estavam dispostas a levar os caminhoneiros de Luziânia até locais próximos dali. Depois disso, ao deixar o bloqueio, os caminhoneiros seguiriam sozinhos.

E aí mora o problema.

Sempre que alguém "deserta" da manifestação, os bloqueios nas proximidades são informados.

Houve casos de quem deixou a manifestação e, no bloqueio seguinte, teve seu caminhão atingido por pedras e paus.

"Se jogam uma pedra no meu parabrisa eu vou gastar R$ 5 mil para consertar. Não vale a pena correr o risco."

Quem passa e quem é retido

Questionados sobre as falsas lideranças que estariam infiltradas no movimento impedindo que os caminhoneiros voltassem a trabalhar, todos os ouvidos por mim disseram que esse tipo de coisa não existe.

Na BR-040, os manifestantes não reconhecem como representantes os sindicalistas que negociaram com o governo.

Presenciei um comboio de caminhões tanque com combustível sendo escoltado e passando pela aglomeração. Também houve a liberação de caminhões que transportavam remédios e cargas vivas.

Outros eram parados. Havia ali, além das carnes e do caminhão de mudança, um carregamento de abacaxi e outro de morango. Ambos devem estragar ainda na noite desta terça.

E a rodovia segue com suas quatro pistas livres.

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