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Agência de modelos usa anúncios no Instagram Stories para recrutar crianças e jovens

"Tem uma dificuldade jurídica de apontar isso como uma publicidade para o público infantil. Estamos vivendo um limbo no YouTube, no Instagram", diz assessor de ONG que advoga pelos direitos da criança.

“VOCÊ” A palavra, em letras maiúsculas, está sobre a foto de uma mulher loira segurando uma bolsa de palha.

“PODE SER” Uma manequim de jeans colado e blusa de oncinha, e um homem de cabelos encaracolados sentado num tamborete, que olha para a câmera com os olhos meio fechados e a boca meio aberta, como se sorvesse o ar.

“MODELO!” A mesma mulher que segurava a bolsa na primeira foto agora está com as palmas das mãos coladas no peito, com uma rosto de muita alegria, enquanto ganha uma outra bolsa de um homem com gel no cabelo e sorriso no rosto.

As três imagens, que somadas montam a mensagem “VOCÊ PODE SER MODELO!”, apareceram em sequência no Stories do meu Instagram numa noite de domingo. Eu, que deveria estar trabalhando mas preferia ver o que as pessoas tinham comido de almoço dominical, dei risada. E arrastei meu dedo para cima como sugeria o anúncio da Agência Vogue, para descobrir como qualquer um poderia ser modelo.

A propaganda leva para um formulário para candidatos a modelo. Entre os campos que preencho (nome, altura, idade e uma foto à escolha do cliente), há “Nome do responsável”. É para o caso de o candidato ser menor de idade. Deixo em branco e preencho os outros.

Mostro o anúncio para um amigo com quem vou jantar. “Eu já conheço isso”, ele responde. Suas duas filhas, de 7 e 11 anos, viram a mesma publicidade em seus perfis de Instagram.

“Graças a Deus nenhuma me pediu para ser modelo.”

Aprovado em 16 horas

No dia seguinte, Aline, uma funcionária da agência, me liga no celular. Diz que, nas 16 horas entre o cadastro e aquela ligação, eu fui avaliado. E aprovado. “Eles gostaram muito de você, você tem tudo para dar certo.”

"Eles", ela explica, são os produtores de casting. Por coincidência, há um teste de elenco para quarta, dali a dois dias.

“Eu consigo deixar uma brecha de horário das dez às quatro da tarde, meu anjo.” Aline me chama de “meu anjo”. A avaliação é para saber em que segmento posso me encaixar e valores de cachê. Pergunto se não pode ser na semana seguinte. Ela afirma que estão com pressa, há uma campanha com o meu perfil aberta e a seletiva precisa ser feita na quarta seguinte.

A agência funciona em um sobrado em Pinheiros, bairro rico de São Paulo. A sala de espera é azulejada e tem dezenas de cadeiras de plástico brancas enfileiradas. Na parede, painéis de dois metros imitando a capa da revista Vogue (com a qual a agência não tem ligação), mas com crianças do casting no lugar de modelos.

Há 17 crianças, todas com roupas tinindo de novas e acompanhadas por suas mães, e eu, o único modelo amador adulto.

Os candidatos preenchem uma ficha de registro nessa sala. O papel pergunta como fiquei sabendo do lugar: Site, Playland ou Outros. Playland é o nome da franquia de parque de diversão que fica dentro de shoppings. Os olheiros da agência costumavam ficar de plantão no parquinho, abordando os adultos que estão com crianças que acham promissoras. Essa era a tática mais usada — até o advento do Instagram, pelo qual a agência pode chegar diretamente às crianças.

Converso com sete mães. Cinco delas estão ali porque suas filhas viram no Instagram a propaganda. Dez minutos depois de preencher a ficha, sou chamado para o estúdio, para onde as crianças vão em duplas ou em trios, após seu nome ser gritado por uma funcionária.

O fotógrafo é um jovem de cabelos lisos e compridos que veste jeans e camiseta cinza. Ele me coloca na frente de uma parede branca, sob holofotes, pede que eu segure minha ficha, como se fosse um suspeito fazendo uma “mugshot” após ser preso em um filme americano.

Em um minuto e meio ele faz as outras fotos. “Agora vira de lado e olha pra mim. Sorri.” Estou liberado, avisa a recepcionista.

Reclame aqui

Nos últimos 12 meses, a Agência Vogue teve 67 reclamações no site Reclame Aqui. Respondeu a 20 delas, e deixou 47 sem resposta. Não há queixas motivadas pela propaganda direcionada a menores de idade. As reclamações são de pais afirmando que pagaram R$ 2.000 para que seus filhos, pinçados por olheiros ou pelo Instagram, fossem fotografados e agenciados pela Vogue por um ano, e não conseguiram nenhum trabalho.

“As queixas do Reclame Aqui, em termos proporcionais, não têm representatividade quantitativa para empresa, uma vez que não ultrapassam 2% dos atendimentos”, diz Anie Recinella, uma das sócias da Vogue e de outras agências do setor, como a Baby Produções e Propaganda.

A reclamação comum, de que a agência cobra e não consegue trabalho para as crianças, é um problema de interpretação de contrato, afirma Recinella.

“Apesar de assinarem termos de ciência, de que o fato de confeccionarem um book não implica necessariamente na obtenção de trabalho, escrito em negrito, algumas pessoas insistem em ignorar este fato.”

Não há criança no Insta?

Faz dois anos que a agência publica no Instagram. “Publicamos as campanhas realizadas pelos modelos da agência”, explica a dona, Anie Recinella.

A Vogue nega que foque seus anúncios em crianças e adolescentes, por mais que alguns dos anúncios exibam imagens protagonizadas por crianças. “Este modelo de publicidade não é focado em menores, e sim nos pais ou responsáveis.”

O Instagram afirma que, no contrato que o usuário assina ao baixar o aplicativo, todos os donos de perfil confirmam ter 13 anos ou mais. E que, caso haja crianças usando o Instagram, isso pode ser denunciado na Central de Ajuda do app. Há uma página para pais, com dicas de segurança no aplicativo.

Adolescentes de 13 anos para cima já podem ser impactados por publicidade, segundo as regras da rede social. A dona da agência afirma que os anúncios vão para adultos, por mais que a maioria da sua clientela seja de crianças.

“Tem uma dificuldade jurídica de apontar isso como uma publicidade para o público infantil. Não tem nenhum tipo de fiscalização mais ativa para verificar se há crianças nessas plataformas”, diz Renato Godoy, assessor de relações governamentais do Instituto Alana, ONG que advoga pelos direitos da criança.

“Estamos vivendo um limbo no YouTube, no Instagram. O que se pode questionar é qual é o contrato de publicidade que essa empresa tem com o Instagram. É focado em crianças? Fere o Código de Defesa do Consumidor ou resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente?”, pergunta Godoy.

Só que parece haver muita criança no Instagram. É o que mostra uma pesquisa TIC Kids Online, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, órgão ligado à UNESCO.

O levantamento, de 2016, aponta que 16% das crianças de 9 e 10 anos têm uma conta no Instagram. O número cresce para 24% no grupo de crianças de 11 e 12 anos. É esse o público que mais preocupa quem luta contra a publicidade infantil.

“Para uma criança, já é nebuloso saber o que é comercial na TV. No Instagram, vai ser ainda mais nebuloso. O formato [dos vídeos ou das fotos] é o mesmo, a linguagem e a tipografia também. Parece uma continuidade”, diz Godoy.

Três dias depois do meu teste de um minuto e meio na Vogue, meu telefone toca. É um funcionário da agência: “Parabéns, você foi aprovado! Agora pode vir até aqui para a gente fechar o seu material, ver o book, essas coisas?”.

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