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Os primeiros dias de Raiane Latoya de Jesus no mercado formal de trabalho

A trajetória da pernambucana de 23 anos — que trabalha desde os 12, sem nunca ter sido contratada por uma empresa — ilustra os obstáculos profissionais para pessoas trans.

Um adolescente para na entrada do Mirante 9 de Julho, a um quarteirão da avenida Paulista, no fim de tarde da última terça. “Rola de descolar uma pulseirinha dessas daí, tia?”, ele pergunta para a hostess. “É um evento só para convidados, mas o café está aberto para todo mundo, pode ficar à vontade”, a hostess responde, apontando com o braço para a escada que dá acesso ao lugar.

A mulher morena, que sorri o tempo todo enquanto fala, havia sido instruída a só colocar pulseira de plástico cor de rosa no braço de quem soubesse do que se tratava o evento — o lançamento da campanha LGBTQ da Uber. É que a pulseira VIP permite ao convidado tomar cerveja, gin tônica e comer sanduíches de graça, enquanto os frequentadores sem convite têm de pagar o que consomem.

“Cê acha que eu fui bem?”, a hostess pergunta, depois. “Porque eu também teria tentado entrar de penetra”, ela ri. A hostess se chama Raiane Latoya de Jesus e, aos 23 anos de idade, está na sua primeira semana de trabalhos esporádicos no mercado formal.

Por mais que já ganhe seu dinheiro com bicos desde os 12 anos, quando chegou sozinha a São Paulo, Raiane nunca tinha passado por um processo de contratação, com direito a currículo, entrevista e gestor.

Sua trajetória é um dos retratos das dificuldades que o mercado de trabalho apresenta para pessoas transexuais. Ela se prostituiu por anos, depois de estudar até a quinta série e fugir ainda criança de casa, e agora mora num abrigo e tenta sair de uma trilha que por muito tempo acreditou ser a única que estivesse disponível para ela. “Mas eu vou conseguir trabalhar.”

Vagas inclusivas, não exclusivas

Foi na casa Florescer, que abriga mulheres transexuais que não têm onde morar e onde mora há um ano, que Raiane conheceu Maitê Schneider, uma das fundadoras do Transemprego. O programa existe há cinco anos, e serve como banco de currículos de pessoas transexuais, para empresas parceiras, e também dá cursos de diversidade para preparar as equipes. "A gente não batalha por vagas exclusivas para trans. Mas por vagas inclusivas. Que essas pessoas sejam levadas em consideração na hora da escolha”, diz Maitê.

O Transemprego nasceu da iniciativa de Maitê, uma dramaturga de olhos azuis que já foi entrevistada por Jô Soares na TV Globo, e de amigas dela como a cartunista Laerte. O nível de escolaridade médio de homens trans no banco de dados delas é mais alto do que o das mulheres trans. “Muitas mulheres trans não têm qualificação, porque são obrigadas a largar a escola porque são expulsas de casa, abandonadas pela família”, afirma Maitê.

Mas, mesmo para quem consegue se formar, há dificuldades maiores. "Tinha várias amigas com doutorado ou mestrado com trabalhos como cuidadora de idosos. Não que seja ruim, mas não encontravam um emprego na área de formação, nem com o salário no nível", diz Maitê.

E, quando finalmente conseguem assinar um contrato, é comum que o emprego não dure mais do que alguns meses. "A gente encontrava as meninas e perguntava como estava. E elas já tinham saído, um mês depois.” As dificuldades, conta Maitê, passam por ser excluída do trabalho em equipe a desrespeito do nome social.

Nos últimos meses, Raiane foi por conta própria a meia dúzia de entrevistas de emprego. O mais próximo a que chegou foi para uma vaga de auxiliar de limpeza. “Ficaram de me ligar. Pergunta se ligaram”, diz Raiane.

Agora, com apoio da entidade, ela acha que consegue um emprego fixo.

"A ideia é colocar num lugar que seja acolhedor. Não botar alguém para tirar foto e dizer ‘Eu sou inclusivo’, quando tem 3.000 pessoas e só uma trans. Mas nesse momento não importa se as pessoas tão fazendo por marketing, a máscara cai rápido!", afirma Maitê.

A dramaturga foi visitar a casa Florescer porque havia fechado uma parceria com o festival Path. Poderia contratar 20 pessoas trans para trabalhar no fim de semana do festival. Recebeu 192 interessados. "Tinha gente que colocava no currículo 'Eu tenho 37 anos e nunca consegui um emprego', era uma coisa muito emocionante”, conta.

Raiane foi uma das escolhidas.

O primeiro dia

Maitê selecionou Raiane como uma das 20 pessoas trans que foram contratadas para o festival, nos dias 19 e 20 de maio. Cada uma delas ganhou R$ 165 por dia, mais almoço e transporte.

Raiane passou seu primeiro dia de emprego instruindo quem chegava ao Largo da Batata sobre como ir até o Instituto Tomie Ohtake, e depois, já no quarto andar do instituto, explicando sobre o que eram as palestras do festival — "Tinha a sobre feminismo e sobre os advogados sem gênero do futuro" — e inclusive conseguiu pegar trechos de algumas.

O primeiro dia de trabalho formal teria sido ótimo, não fosse uma passagem que durou segundos. Durante o horário de almoço, depois de comer com as amigas, foi bater perna na livraria Fnac, a um quarteirão do Tomie Ohtake.

Na hora de usar o banheiro, uma funcionária da limpeza a viu entrando na porta demarcada com uma bonequinha usando vestido, e disse: “Ei, esse aí é o banheiro de mulher”. Raiane não piscou antes de começar a falar: “E você acha que eu sou o quê?”. Num tom simpático, ela continuou a falar com a funcionária que a tinha abordado: “Mulher, você não assiste jornal? Não sabe que é lei? Que eu uso o banheiro que eu quiser?”. Funcionários da loja chegaram em segundos para apaziguar a tensão. “Ela pode usar o banheiro que quiser”, disse um vendedor.

Raiane entrou e fez o que tinha de fazer. “E o resto foi ótimo.”

A Fnac afirma que qualquer atitude transfóbica não condiz com os valores e as ações da empresa. "Situações, como o caso da Raiane, podem acontecer, mas são muito pontuais e solucionadas sempre no sentido de respeitar a diversidade, respeitar as pessoas mesmo", disse a livraria em nota.

Brunna, a veterana

Aos 24 anos, Brunna Pires é uma veterana do mercado formal. “E penei para encontrar uma vaga em que me sinto respeitada.” Ela, que teve a carteira assinada pela primeira vez no McDonald’s de Itatiba (SP), quando tinha 15 anos, é uma veterana de incursões em empregos. “Na lanchonete era de boa. A molecada, de 15 a 18 anos, não ficavam zoando nem nada.” A mãe disse que era loucura da favela. As tias disseram que ia passar.

A partir dos 16, Brunna insistiu em ser tratada como a mulher que é. Pediu para a família parar de usar o nome masculino com que haviam lhe batizado. A mãe, então, criou o apelido Buga, porque não conseguia chamar de Bruna.

Brunna parou de estudar no primeiro colegial. "Era aluno me zoando, diretor achando que eu queria aparecer, me fazer de vítima."

Quando fez 18 anos, foi ser auxiliar de produção em uma fábrica que monta cabos elétricos. No chão da fábrica conheceu Andressa, que compartilhava planos de fazer faculdade e não cogitava se prostituir. “Comecei a acreditar nisso também.”

Os dados sobre a empregabilidade de transexuais são escassos. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais aponta que 90% das pesquisadas se prostituiu em algum momento da vida. A média de vida dessa população no Brasil é de 35 anos – menos da metade da média nacional (75 anos). Mas faltam indicadores da entrada de pessoas trans no mercado formal.

Há cinco anos em São Paulo, Brunna chegou a dormir na rua por falta de dinheiro. Faz um ano que está terminando os estudos no Transcidadania, e também conseguiu um estágio com indicação do Centro de Integração Empresa Escola.

É recepcionista do gabinete do vereador Toninho Vespoli (PSOL) faz quatro meses. Imaginou que teria de comprar roupa nova — o que acabou não acontecendo. “Eles me respeitam aqui. Ninguém me olhou torto. Isso me ajuda.”

Fez sete entrevistas de emprego antes de conseguir a vaga. Talvez porque tenha tido uma má experiência no estágio anterior. Fazia contagem de carros e de pessoas nas ruas para a CET, órgão de trânsito de São Paulo. “Aí, um dia de manhã, eu disse que estava precisando de um lápis. Um colega virou e disse: ‘Lápis você já tem, precisa deixar de ser safada’. Eu perdi a cabeça e pulei em cima dele.” Foi demitida e recebeu uma anotação de indisciplina na carteira de trabalho.

Na Câmara, “foi a primeira entrevista de emprego em que vieram perguntar o meu lado, o que tinha acontecido”, diz Brunna.

O segundo emprego de Raiane

Um dia depois da sua estreia no mercado de trabalho, Raiane recebeu outra boa notícia. Foi a única das pessoas que trabalhou no festival a ser chamada para cuidar da porta do evento da Uber, dois dias depois. “Acho que foi por causa do meu desempenho. E também por causa de Deus, né?”

Recebeu a mensagem na segunda-feira, dia anterior ao evento, por e-mail, porque seu celular com capacidade para três chips está com a bateria viciada, é só sobrevive fora da tomada por meia hora. “Pulei de alegria.” Mas não teve muito tempo para comemorar: foi pintar as unhas de gel de preto, e alisou o cabelo. Às 16h da terça, uma hora do começo do evento, já estava a postos na porta do local. “Eu quero muito que dê certo, sabe? E preciso mostrar que estou disposta”, diz, antes de os convidados começarem a chegar.

“Inclusão é lindo, mas é integração?”, pergunta Laura Prevato, uma loira magra como uma modelo. Laura é uma das pessoas por trás do Transcidadania, iniciativa pública que oferece uma bolsa para pessoas trans que querem terminar o ensino médio ou fazer cursos complementares. “Eu tive a sorte de vir de uma família de classe média que me apoiou durante toda a transição e pude me formar. Mas, mesmo assim, encontro dificuldades todos os dias.”

Laura afirma que as vagas inclusivas estão crescendo, mas que pessoas trans penam para crescer dentro de um emprego, mesmo depois de conseguir um. “Você fica limitada a subempregos, coisas mais operacionais. A questão não é só dar um emprego operacional com salário de R$ 1.200 por mês. Tem que levar em conta os planos futuros: onde essa pessoa vai estar daqui a cinco anos? A empresa vai investir nela?”

Cada aluna recebe cerca de R$ 1.000 por mês para frequentar o programa por seis horas diárias, cinco vezes por semana. Duas turmas já se formaram, em um total de 70 pessoas. Raiane foi uma das participantes que não conseguiu concluir.

“Eu tive problemas. Não conseguia ir a todas as aulas e acabei sendo cortada depois de um ano”, ela conta na porta do evento onde está trabalhando, enquanto a palestra já começou e o público parou de chegar por alguns minutos. “Daí achei que não fosse conseguir mais um emprego.”

RG emprestado

A apresentação acabou, e o Mirante 9 de Julho já se transformou em uma pista de dança quando a supervisora vem liberar que Raiane deixe seu posto na entrada. “Vai pra pista, come alguma coisa”, sugere. Raiane pega uma Pepsi e fica no balcão, vendo os convidados dançarem.

Desde que decidiu parar de usar drogas e álcool, há três meses, ela se reconciliou com a Igreja Católica. Todo domingo vai à missa.

“Quem não tem Deus não consegue as coisas. Hoje, por exemplo, foi Deus quem me ajudou.” Ela acende um cigarro e vai dar um beijo na DJ. E decide partir.

Às 22h, Raiane pega o envelope com os R$ 250 do cachê do dia e parte. Enquanto anda até a Paulista, ela conta da sua trajetória. Saiu de casa aos 12 anos. Para embarcar no ônibus que levou 48 horas para chegar a São Paulo, usou o RG do irmão, 11 anos mais velho, para burlar a regra que proíbe menores de 16 anos de viajarem sozinhos. “Ninguém duvidou. Eu sempre fui altona”, diz, enquanto anda até o metrô Trianon Masp.

Antes de se mudar, fez até a quinta série. O irmão e a irmã conseguiram estudar até completar o colegial. Cada um tem hoje sua confecção. Pergunto se ela acha que sua vida foi diferente por ser transexual. “É claro que foi. Olha onde eles estão e onde eu estou. Faltou oportunidade?”

O cliente nem sempre tem razão

Quando postou a foto de duas funcionárias transexuais um ano atrás, no Dia da Visibilidade Trans, o Carrefour ganhou em troca 62 mil curtidas e quase 7.000 comentários, a maior parte deles elogiosos.

Desde 2013 a empresa francesa tem uma plataforma de diversidade no Brasil. A rede de supermercados tem entre 30 e 40 funcionários transexuais. Não há um plano de carreira específico para essas pessoas, como há para mulheres. Mas a marca diz que estuda essa possibilidade.

A preocupação ficou explícita depois que uma cabeleireira trans que trabalhava num salão de beleza dentro da galeria de serviços do supermercado ouviu queixas por usar o banheiro feminino, conta Karina Chaves, gerente de Diversidade do Carrefour Brasil.

Desde então, a empresa montou planilhas e vídeos ensinando os funcionários a respeitar a identidade de cada pessoa. “É uma empresa que quer interagir com respeito com todas as pessoas. Os direitos humanos são os valores da empresa. Se a pessoa não está de acordo com eles, talvez seja melhor ela não trabalhar aqui”, diz Karina.

Uma das caixas trans do supermercado conta que, semanas atrás, um cliente foi reclamar com o gerente que a presença dela era um desrespeito.

“O gerente disse que o cliente podia se incomodar com a falta de algum produto ou com o tratamento ruim da parte de algum funcionário, mas não da existência de um funcionário”, diz a caixa, que pediu para não ter seu nome publicado.

“Eu aguentaria é todo dia”

Enquanto termina de fumar um cigarro na rua, Raiane conta que desde os dez anos tem consciência de que é mulher. “A minha mãe não aceitou muito bem no começo, mas hoje a família toda está de boa.” Faz três anos que ela perdeu a mãe. “Eu não consegui encontrá-la uma última vez, mas Deus permitiu que a gente fizesse as pazes. Ela foi embora me aceitando.”

Raiane nunca contou para a família como se sustentou com o dinheiro ganho nas ruas de São Paulo, por seis anos. “Tem muito dia que é muito ruim e pouco dia que é até bom. Mas são poucos.”

Enquanto espera o trem, ela conta da época em que se juntou com um namorado. “Ele era legal. Gostava de mim. Mas tinha ciúme, queria me prender, não dava”, e mostra cicatrizes nos dois punhos. “Essa aqui precisou dar seis pontos internos e quatro fora. Eu quase morri nesse dia.”

O trem chega, Raiane entra e joga as mãos para o céu que há um lugar vago. “Acho que eu nasci pra ser artista”, ela diz enquanto mostra um vídeo de si mesma no celular.

Ela atua numa peça sobre direitos da mulher, realizada na Casa Florescer. “A minha frase predileta é: ‘Eu não sou peito e bunda’. Acho que quero ser artista. Eu sou meio aparecida.” Mostra outro vídeo em que está dublando uma música em italiano, com os lábios em perfeita sincronia com o som. “Parlo bene l'Italiano. E nunca fui pra lá. É que eu namorei um italiano, morei com ele e tudo.”

O trem chega na estação Armênia. Raiane atravessa a praça do metrô andando rápido, com a bolsa abraçada junto ao corpo. “Tem muito malaco essa hora.” Raiane geralmente não anda por ali durante a noite. O horário limite para entrar no abrigo é às 20h. Mas há exceções para quem está fora trabalhando, como é o caso dela neste dia.

O abrigo fica num casarão de dois andares, com cerca e arame farpado na porta. A rua, cheia de fábricas e depósitos, está deserta a essa hora da noite, a não ser por pessoas sem-teto que decidem armar suas barracas lá na frente, para aproveitar da proteção, mas não entram. No Florescer, são 28 pessoas distribuídas em quatro quartos. O de Raiane tem dez pessoas.

Ela tropeça quando está quase na porta. “Olha, tô exausta.” Pergunto se ela aguentaria esse ritmo cinco dias por semana. “Eu aguentaria é sete dias por semana. Todo dia. Se tivesse emprego todo dia.”

No dia seguinte, vai fazer uma selagem no cabelo com parte do cachê. Mas pretende guardar pelo menos metade. “Se eu tiver um trampo fixo, vou ficar lá três meses, até ter uma reserva e alugar meu quartinho.”

Esta é a Semana do Orgulho LGBTQ no BuzzFeed Brasil. Para mais conteúdos que celebram o respeito à diversidade, acesse aqui.

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