Como "Bohemian Rhapsody" vende uma visão moralista e higienista de Freddie Mercury

Ao tentar contar a história queer de Mercury pelos olhos de seus colegas de banda héteros, a nova cinebiografia do Queen acaba tendo pouco a dizer.

20th Century Fox

Rami Malek como Freddie Mercury em "Bohemian Rhapsody".

As cinebiografias de celebridades são, quase por definição, narrativas estereotipadas que descrevem uma combinação de ascensão, queda e redenção. Apesar disso, elas funcionam melhor quando conseguem ir além do senso comum sobre um artista ou figura pública, encontrando uma parte inexplorada de sua vida e apresentando algo novo sobre eles. E, de certa forma, o subgênero de filmes sobre figuras queer famosas que nunca saíram do armário durante suas carreiras pode contornar o problema da falta de originalidade das cinebiografias com mais facilidade, porque o próprio fato de retratar a sexualidade da estrela confere a eles uma abordagem diferente.

Quando surgiu a notícia de que estava em produção uma cinebiografia sobre Freddie Mercury e a banda de rock britânica Queen, alguns críticos expressaram preocupação sobre como Mercury seria representado. Sacha Baron Cohen, que se interessou em interpretar Mercury em uma versão anterior do projeto, em 2010, desistiu em 2013 porque sentiu que o filme falharia em retratar a partes polêmicas da vida de Mercury, como suas festas regadas à drogas. O diretor original do filme, Bryan Singer, foi demitido no meio da produção, em dezembro do ano passado, e substituído por Dexter Fletcher, embora Singer tenha mantido o único crédito de direção. Então, após o lançamento do trailer promocional do filme no início deste ano, que enfatizava o relacionamento de Mercury com uma namorada, Mary Austin, os críticos imediatamente acusaram o filme de transformá-lo em hétero.

Mercury, o vocalista da banda, nunca saiu do armário para o público em geral ou se rotulou em uma entrevista. Mas agora sabemos que seu último relacionamento romântico importante foi com um homem, e ele não escondia seus relacionamentos com homens para pessoas próximas. Sua morte devido a complicações da Aids, em 1991, quando a doença ainda tinha uma conotação escandalosa de promiscuidade entre homens gays, o tornou uma dessas celebridades, como Rock Hudson ou Liberace, cuja imagem se tornou, de certa forma, definida por uma tragédia queer.

"Bohemian Rhapsody", que estreou este mês, após mais de 10 anos no limbo da produção, não é necessariamente uma transformação da vida privada de Mercury em hétero nem esconde seu uso de drogas. No entanto, no fim das contas, vende uma versão moralista e higienista de sua vida e música, tornando-o "respeitável" para o público tradicional — tanto pelo que o filme enfatiza quanto pelo que deixa de fora. O filme não nega sua sexualidade, mas também não explora as nuances da vida ou da arte de Mercury como um homem queer.

Em uma cena inicial reveladora, enquanto a banda está em processo de conseguir seu primeiro grande contrato com uma gravadora, Mercury explica o apelo único do grupo a um executivo da gravadora como "desajustados cantando para desajustados". Porém, na verdade, era Mercury, um homem queer e imigrante, que era o intruso, tanto dentro quanto fora da banda — e o filme teria sido mais forte se tivesse explorado essas tensões. Em vez disso, a mais recente cinebiografia sobre uma celebridade que não assumiu publicamente sua sexualidade durante o auge de sua fama, no fim das contas, serve como uma fábula sobre como é difícil para os filmes tradicionais fazer justiça às vidas e aos legados queer.

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Para entender as limitações de "Bohemian Rhapsody", é importante entender sua origem. O ex-empresário do Queen, Jim Beach, é um dos produtores, e os companheiros de banda Brian May e Roger Taylor foram consultores criativos. Aparentemente, em algum momento, eles aprovaram o roteiro e até ajudaram a decidir quem interpretaria Mercury e quem dirigiria o filme.

Como Sacha Baron Cohen explicou depois que abandonou o projeto, os colegas de banda tinham suas próprias ideias sobre como o projeto deveria funcionar. “Um membro da banda, não vou dizer quem, disse: 'Este é um ótimo filme porque tem uma coisa incrível que acontece no meio’”, lembrou Baron Cohen. "Perguntei: 'O que acontece no meio do filme?' Ele respondeu: 'Freddie morre'."

Baron Cohen percebeu que os companheiros de banda queriam que a segunda parte do filme focasse na jornada do Queen depois de Mercury. Ele, conscientemente, disse a eles: "Olha, ninguém vai assistir a um filme onde o personagem principal morre de Aids e depois você vê como a banda segue em frente." O filme resultante — sobre o qual o guitarrista Brian May e outros membros da banda afirmam que acabaram tendo pouco controle — sem dúvida é centrado em Mercury, mas enquadra sua vida inteiramente dentro da jornada da banda e, assim, deixa muita coisa de fora.

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O filme não nega a sexualidade de Mercury, mas também não explora as nuances de sua vida ou de sua arte como um homem queer.

O filme começa e termina com o famoso show da banda no Live Aid de 1985. O que vemos da vida de Mercury começa quando a banda começa: Mercury impressiona dois de seus colegas de banda em uma audição improvisada depois que o vocalista original a abandona. O que não vemos é como ele desenvolveu suas habilidades musicais ou qualquer uma de suas influências. Da formação em design, que ajudou Mercury a criar seu personagem de palco, à escolha extravagante do nome da banda — que os outros membros da banda inicialmente não gostaram —, sua visão ajudou a moldar o estilo único e além do gênero que deu à banda enorme sucesso mundial. Mas, considerando o quanto a narrativa ignora o desenvolvimento de Mercury fora de sua família ou da banda (muitas vezes mencionada como sua segunda família), é difícil ver ou entender seus pontos de vista.

O filme apresenta a escolha de seu nome artístico, Freddie Mercury, não em relação ao que isso significa para ele, mas em relação a como seu pai se sente sobre isso — como uma rejeição de seu nome de família e herança. (Mercury nasceu Farrokh Bulsara, em Zanzibar, no que hoje é a Tanzânia; o filme muitas vezes o retrata irritado pelo conservadorismo de seus pais imigrantes). E, embora vejamos uma cena rápida de Mercury criando o logotipo do Queen em certo momento, não é apresentada nenhuma ideia do que o nome significava para ele ou por que ele o escolheu, tirando o fato de ser "ultrajante".

O crescente sucesso da banda é retratado em uma série de montagens de shows, mas um foco mais específico é dedicado à gravação do Queen de "Bohemian Rhapsody". Mercury escreveu a música, e muitos, incluindo o ex-empresário da banda, especularam que ela falava sobre sua identidade sexual. O que quer que as letras insinuem, a canção foi um símbolo do gênio vorazmente eclético de Mercury e um cruzamento espetacularmente estranho de graves e agudos, ópera e rock.

No entanto, no filme, tirando imagens ridiculamente genéricas de Mercury sendo inspirado por uma paisagem natural, nunca conseguimos ver como a música surgiu por meio de suas experiências ou o que significou para ele. Em vez disso, há piadas sobre como um dos companheiros de banda parece castrado por causa do quão agudo Mercury o faz cantar. (Durante a cena do último show, quando Mercury canta a música, ele manda um beijo para sua mãe durante a famosa parte “mama”, outro lembrete de como tudo sobre o desenvolvimento de sua identidade artística no filme é reduzido ao contexto da banda ou de sua família.)

Ser queer não se resume apenas às complexidades de uma vida privada; também tem a ver com uma certa sensibilidade ou estilo, principalmente quando se trata de criação artística. A música e a personalidade de Mercury foram revolucionárias, em parte porque evocavam uma estética queer com a qual o próprio filme sugere que seus colegas de banda nem sempre estavam confortáveis. Por exemplo, eles se recusam a entrar no gênero disco nos anos 70, que era frequentemente rejeitado como um gênero gay na época, principalmente nos ambientes de rock; os colegas de banda alegam que disco simplesmente “não é a cara do Queen”, mas não temos nenhuma ideia do que disco significava para Mercury, que é mostrado rapidamente sassaricando em boates gays.

Conforme Mercury vai se encontrando filme, ele adota um estilo gay masculino de bigode e jeans que ficou conhecido como o look "macho clone" nos anos 80. Os membros da banda, consequentemente, fazem comentários depreciativos para ele, como “somos o Queen, não o Village People”. Essa observação em particular é retratada como uma piada boba, em vez de ser examinada pelo que poderia revelar sobre o relacionamento de Mercury com seus colegas de banda héteros, ou o que significava para ele reafirmar esse estilo em público durante um momento tão anti-gay. Uma coisa é ser extravagantemente além do gênero no meio do glam rock, outra é adotar um estilo específico da subcultura gay.

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A música e a personalidade de Mercury foram revolucionárias, em parte porque evocavam uma estética queer com a qual o próprio filme sugere que seus colegas de banda nem sempre estavam confortáveis.

Em contraste, o filme dedica muito tempo ao relacionamento de Mercury com uma namorada, Mary Austin (Lucy Boynton). Não há nada de errado em enfatizar esse relacionamento, que significou muito para Mercury na vida real. No entanto, essa ênfase se torna problemática quando comparada à maneira limitada pela qual seus relacionamentos com homens são retratados.

Mercury é mostrado pela primeira vez à procura de um homem em uma parada de caminhões durante uma das suas primeiras turnês, enquanto fala com Mary ao telefone – a cena, no entanto, se concentra no que isso significa em termos de sofrimento para sua namorada. Depois, ele aparentemente é iniciado na sexualidade gay pelo predatório Paul Prenter, um ex-empresário que o apalpa e o beija à força. Como escrito no filme, Prenter é quase um vilão clássico, que encoraja a queda de Mercury nas drogas e boates. (O filme apresenta Mercury como alguém que se descobre após adulto, mas um biógrafo ressalta que até seus colegas de escola sabiam que ele era "homossexual" desde criança.)

O filme apresenta o uso de drogas e a sexualidade de Mercury como entrelaçados, e enquadra ambos de forma moralista — como resultados da má influência de Prenter —, como se Mercury não tivesse prazer nem mesmo fontes de inspiração artística com suas experiências e na comunidade queer. Por outro lado, por exemplo, a namorada Mary é mostrada encorajando seu interesse pela moda andrógina desde o início.

Mercury deixando a banda para projetos solo é retratado como um grande momento, mas apresentado como uma ação egoísta causada pela influência de Prenter — em vez de, por exemplo, pela frustração com seus colegas de banda héteros, ou porque se considerava um artista sério com suas próprias mensagens. Por fim, Mercury é "resgatado" dessa vida de drogas, sexo, libertinagem e influência de Prenter, e volta com a banda, por meio da namorada Mary, rumo ao final do filme.

Rami Malek, o ator hétero que interpreta Mercury, defendeu a decisão do filme de não focar no que ele chamou de aspectos "mais sombrios" da vida de Mercury. “Fazer um filme sobre alguns aspectos de sua vida que eram mais sombrios e mais sórdidos do que os que quero celebrar não vale a pena para mim, nem para o público, na minha opinião.” Mas não há nada inerentemente sombrio na história de Mercury, e não há necessidade de “proteger” as representações de homens queer das drogas e da sexualidade, ou retratá-los como anjos ou vítimas (seduzidos por outros vilões gays ruins).

O diretor hétero de um documentário recente sobre Alexander McQueen teve uma visão semelhantemente moralista em relação às experiências do designer com as drogas, sua sexualidade e seu diagnóstico como HIV positivo. "Sabe, há muitos elementos sombrios na vida de [McQueen]", explicou ele. "Queríamos mencioná-los e não queríamos encobri-los, mas nunca quisemos focar naquilo que achamos que seria vulgar."

Esse filme aborda as explorações de McQueen com drogas e sexo de uma maneira superficial, sem explorá-las como uma fonte de descoberta, e também ignora o que seu diagnóstico de HIV significava para ele. Tanto "McQueen" quanto "Bohemian Rhapsody" parecem estar presos em um momento em que a crise da Aids foi superficialmente entendida como uma tragédia que surgiu de homens gays com um estilo de vida "sórdido", em vez de como resultado do preconceito anti-gay e da negligência governamental diante de uma crise de saúde pública.

O último parceiro de Mercury, Jim Hutton, participa de duas cenas no filme — dando sermões para Mercury durante sua época de drogas e boates, e depois aparecendo em sua porta antes do show final no Live Aid — no que parece uma tentativa de redimir o lado queer de Mercury com um parceiro "respeitável". Quando Mercury é diagnosticado com HIV, perto do final de "Bohemian Rhapsody", ele aceita seu destino com sua malícia habitual, dizendo à banda que não quer ser um garoto-propaganda ou uma história de alerta sobre a Aids. No entanto, quando ele sai do hospital após seu diagnóstico, uma luz branca o envolve, como se ele se tornasse um tipo de anjo martirizado, pronto para o que é retratado como seu clímax no show do Live Aid de 1985 com o Queen. (O diagnóstico dele, na verdade, veio depois daquele show, mas é antecipado para se encaixar na história da banda.)

Quer esse tenha sido ou não o auge na vida do próprio Mercury, o filme faz dele um momento de falsa resolução. Ele subitamente sai do armário para seus pais antes do show, apesar de, segundo sua mãe, ele nunca ter feito isso na vida real. É quase como se o filme tivesse medo de deixar o público desconfortável com a realidade da dor queer, e como se, do começo ao fim, a vida de Mercury fosse mais significativa em relação ao que ele significava para sua família e para a banda, em vez do que significava para si mesmo.

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20th Century Fox

Há uma certa sobreposição interessante entre Mercury e Liberace, o tema da cinebiografia de 2013 de Steven Soderbergh, "Minha Vida com Liberace". Ambos eram artistas musicais extravagantes que romperam ideias convencionais sobre a masculinidade. E, assim como com Liberace, as especulações sobre a sexualidade e a morte de Mercury devido a complicações da Aids levaram a uma grande presença de sua figura na mídia durante sua vida e após sua morte, aumentando sua aura mítica.

A cinebiografia de Soderbergh foi convincente, revelando as complexidades do apelo de Liberace — vendendo uma mistura de artista extravagante puro com o interior dos EUA —, com um olhar interessante nos bastidores de sua vida. Soderbergh teve que fazer o filme com a HBO, em vez de com os grandes estúdios com os quais ele já havia trabalhado, porque, como ele disse: “Ninguém queria fazer o filme. Diziam que era muito gay."

Esse filme, não por acaso, foi baseado na biografia do amante de Liberace. A questão em torno de qual ponto de vista uma história de vida deve ser contada é sempre importante, ainda mais com ícones queer. O ex-parceiro de Mercury, Prenter, é retratado no filme como um vilão, porque eles tiveram um desentendimento e ele vendeu as histórias de seu ex-namorado para os tabloides. Por outro lado, não há sugestão de que seus colegas de banda possam ter tido seu próprio ponto de vista tendencioso e interesses comerciais. Os colegas de banda de Mercury admitiram que não sabiam muito sobre sua vida privada, e outras críticas observaram como Rhapsody surge quase como uma tentativa da banda de acertar as contas com Mercury, já que ele escreveu a maioria dos sucessos do grupo e, desde sua morte, tornou-se o membro mais famoso.

Em uma entrevista, o ator Rami Malek destacou a universalidade da fama de Mercury, sugerindo que pensar nele como um "ícone gay" era redutivo. "Ele não se permitiu ser categorizado, colocado em nenhum rótulo — ele foi um revolucionário." Esse é o tipo de comentário que os cineastas ou executivos de Hollywood costumam fazer para sugerir que contar uma história de um ponto de vista especificamente queer é, de alguma forma, redutivo ou provinciano. No entanto, os artistas se tornam revolucionários porque criam algo que vem de um lugar muito particular.

Em uma entrevista para a BBC, o colega de banda Brian May disse que a tortuosa produção de 10 anos do filme era um sinal de seriedade: "Filmes que significam algo muitas vezes passam por um período de gestação muito difícil, e esse provavelmente não é exceção". Apesar disso, em sua tentativa de contar a história muito particular e especificamente queer de Mercury por meio dos olhos de seus colegas de banda héteros e das convenções mais normativas, "Bohemian Rhapsody" acaba tendo pouco a dizer.

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A tradução deste post (original em inglês) foi editada por Luísa Pessoa.

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