As mulheres brancas estão me enlouquecendo

Mulheres brancas são perigosas porque podem ser suaves – inocentes até que se prove sua inocência.

KL Ricks para o BuzzFeed News

Ontem pisei sem querer no tapete de ioga de uma mulher branca, e ela me olhou como se tivesse acordado comigo ao pé da sua cama, sugerindo que assassinássemos seu marido e fugíssemos juntas. Ela me olhou como se eu tivesse fugido do zoológico, como se eu fosse um hipopótamo que achou um estúdio de ioga no Brooklyn (bairro de Nova York, EUA) para fazer a aula das 8h. Parecia assustada, como se tivesse acabado de descobrir que o mundo realmente acabou em 2012 e, desde então, ela estava fazendo ioga três vezes por semana sem ter motivo, porque na realidade tinha virado um fantasma.

Ela me olhou como se eu não fizesse parte do mundo dela; mas lá estava eu, e ela não sabia o que fazer comigo.

Às vezes as mulheres brancas olham para a gente como se estivessem com fome. São aquelas brancas que podem se referir a nós como chocolate, café com ou sem leite, ou Princesa Jasmine. Outros comportamentos incluem comentar obsessivamente nossas características; pedir que falemos línguas que não têm nada a ver com a gente; realmente tentar tirar selfies conosco; demonstrar um interesse exagerado em nossas vidas (especialmente quando descobrem que temos ascendência egípcia ou de algum outro país com pessoas não brancas e que foi pilhado por seus antepassados); usar os emojis de mãos marrons.

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Elas dizem: “Você está bem?” quando sabem que estamos muito bem, obrigada.

Às vezes elas nos olham com pena, como se estivessem assistindo a um anúncio da Unicef, não uma pessoa dançando discretamente no ponto de ônibus ao som de Moby. Esses olhares partem do princípio que “deve ser difícil ser uma mulher muçulmana liberta (deixe eu te salvar)”. E aí, surpresa – elas dizem: “Você é tão articulada”.

Às vezes nos dirigem um olhar perdido quando dizemos algo inteligente ou engraçado, ou quando estamos ainda mais bonitas que de costume. Esse olhar também é usado quando não é mais conveniente ou seguro se aliar conosco, e ele pode aparecer do nada. Elas dizem: “Você está bem?”, quando sabem que estamos muito bem, obrigada. Dizem: “Você está bem?” em vez de “Não estou à vontade”, porque não estão acostumadas a se sentir pouco à vontade e não têm pruridos em nos transformar no problema.

Às vezes, quando nos defendemos, as brancas nos olham com fragilidade. Elas dizem acessar emoções como medo ou dor num piscar de olhos, como se tivessem nascido para isso, antes que ousemos considerar que nós também podemos sentir medo ou ficar magoadas. Elas arregalam os olhos, dizendo: “Porque você me pune se tenho um coração tão grande?”

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O ano é 1999, e as crianças estão brincando de pega-e-beija num playground no leste de Londres. Era uma brincadeira tradicional e um trauma em potencial para muitos de nós: os meninos corriam atrás das meninas, e vice-versa; se te pegassem, te beijavam. Eu não brincava porque os meninos com certeza não queriam me pegar, mas eu observava, querendo ser menino e torcendo para meus seios crescerem rápido. Minha primeira paixão foi Mary-Kate ou Ashley; não lembro qual das duas irmãs Olsen. Antes da escola, aos 9 anos, sentava na frente da TV, dentuça e com cabelo pixaim, perdida em algum ponto entre querer beijá-las ou ser uma delas. Olhar aqueles narizinhos de pug dava uma sensação de calor, como uma torrada ou xixi na cama, e eu estava feliz sozinha, observando-as através do vidro.

Mulheres brancas, especialmente as que têm dinheiro, são perigosas porque podem ser suaves. Pincelada por pincelada, elas constroem um tipo de feminilidade que nega o fato de seus corpos ainda serem agentes da supremacia branca. Elas são tão gentis consigo mesmas que simplesmente não entendem que podem ser oprimidas e ao mesmo tempo opressoras.

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Mulheres brancas são inocentes até que se prove sua inocência.

Aprendemos a andar na rua com uma chave entre os dedos caso sejamos atacadas por homens à noite, mas ninguém nos ensina a nos defender da branca que vai tentar nos devastar por dentro, com um sorriso, um comentário, uma traição, uma omissão, um olhar. Como elas vão escolher o conforto, não o esforço, como lerão este texto achando que estou falando de outra pessoa. E mesmo que nos alertem, mesmo que nossas mães nos ponham para dormir com um aviso, na verdade não vamos ouvir, porque as mulheres brancas são inocentes até que se prove sua inocência.

No ano passado, na praia, meu amigo J disse: “Pense em islamofobia, transfobia, escravidão, prisão… Homens brancos e negros sofrem tanta discriminação de gênero quanto mulheres brancas”. E, na segurança de um grupo de amigos não-brancos sob o Sol, sem sentimentos brancos para proteger, sem choque branco para absolver, consideramos: a pessoa que perguntou a J se ele era vendedor de tapetes, o racismo e a fetichização do feminismo, e todas as vezes que automaticamente atravessei uma sala de mulheres brancas para ficar ao lado de um homem negro.

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É engraçado, porque às vezes as brancas são tão delicadas que trago à tona reações de horror delas só por ficar perto demais das suas coisas, mesmo que elas estejam somente fazendo ioga e na verdade nada daquilo jamais tenha sido delas. Não é engraçado, porque esse olhar vira uma ligação para a polícia, vira outro não-branco preso em uma cela ou um hospital psiquiátrico, outro negro assassinado. Apesar de ter recebido mais amor do que é razoável na vida, e apesar de me dizerem que sou bonita, desde o princípio esse olhar é o motivo pelo qual sempre me senti suja – ou pelo menos não exatamente limpa.

O olhar no estúdio de ioga pareceu familiar, como um parente que não via há tempos e não queria reencontrar. Ao registrar o olhar, voltei para a versão de mim mesma na
infância, quando não sabia por que olhavam para mim ou o que eu tinha feito de
errado, mas sabia o que era humilhação e sabia o que era pânico e sabia o que
era ser um animal selvagem, uma fera ou um bicho de estimação. A versão deprimida de mim, incapaz de ser alvo de olhares, assistindo no escuro a dramas da TV britânica com elencos totalmente brancos e se sentindo confortada, ou alguma versão falsa daquilo. A versão adolescente de mim mesma sentindo tesão por Mary-Kate, por Cameron, por Scarlett, esperando que elas reparassem em mim, lambessem meu rosto, tocassem meu cabelo. Somos os maiores viajantes do tempo, existimos em vários lugares ao mesmo tempo, mas, definitivamente, também aqui.

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Esse olhar é o motivo pelo qual sempre me senti suja – ou pelo menos não exatamente limpa.

Estamos comendo ovos, e conto para Y que, quando tinha 8 anos, ensinei minha amiga branca, B (que na verdade se chama Becky), como contar até 10 na língua urdu (. Como no dia seguinte na escola ela olhou para o chão e passou batida por mim, e a professora branca me puxou de lado e perguntou por que eu estava fazendo bullying com Becky, porque a mãe de Becky tinha me acusado de bullying, e que talvez fosse melhor se eu não sentasse mais perto dela. Ela sugeriu isso dando de ombros, sem maiores preocupações, com uma carinha meio triste, a mesma linguagem corporal que as brancas usam quando é melhor abrir guerra psicológica contra uma criança não-branca do que desafiar outra branca.

Lembro bem do choque e da confusão que senti naquele dia. Tinha certeza de que eu e Becky tínhamos nos divertido. Me senti tão culpada, apesar das insistências da minha mãe que a mãe de Becky era uma vaca racista e que eu não tinha feito nada errado. Senti medo de mim mesma e do meu potencial de magoar meninas brancas inocentes sem nem sequer perceber.

“Começa tão cedo”, disse Y, quando parei de falar. “Como aprendemos a duvidar de nós mesmas e de nossa intuição, a desconfiar do que sabemos ser verdade, e tudo isso porque os brancos têm de ensinar, não aprender.” Dezoito anos depois, essa afirmação
ainda soa atual, como parece divino contar essa história para a pessoa que amo
sem ter de explicar a experiência de me contorcer emocionalmente o tempo todo,
sem ter de explicar por que machuca tanto.

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Uns dois anos atrás, fui a um evento de arte em Manhattan, percebi que todas as outras pessoas ali eram brancas e imediatamente saí. Acho que tinha acabado minha fase de ser a não-branca simbólica. Nessa cidade em que ambulâncias gritam como mães, como o pior já aconteceu, aprendi a não viver à sombra da brancura. Também aprendi que sou o
sol, o objeto e a sombra. Aprendi a me curvar, chacoalhar a bunda, colocar os
dedos tão fundo dentro de mim que, aos 27 anos, finalmente acertei aplicar um
O.B. Exageram a importação da limpeza, e sempre vi beleza na cidade.

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Pisei com força no tapete de ioga roxo e fitei a mulher.

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Meu primeiro ataque de pânico aconteceu num vagão do metrô de Londres, no verão de 2011. Ainda não sabia o que era ansiedade, mas ela veio com toda a força, e fiquei obcecada com o medo de que me jogaria na frente de um trem ou explodiria. Apesar de não ter ideia de como funcionam as bombas, passei a checar metodicamente as mãos dos outros passageiros do metrô ou do ônibus. Esse era meu segredo, porque tinha vergonha de ter me tornado a mulher branca aterrorizada. Mas, quando mais tentava sufocá-la, mais ansiedade sentia.

Não esperava gritar com a branca do tapete de ioga, porque não grito. Choro, fico no quarto por semanas, escrevo, faço comentários maldosos com as pessoas que amo, me corto, dou tapas fortes no braço de quem me faz rir, mas não grito. Sem gritar, talvez prove que os outros estão certos: “Olha só, isso fala”.

Alguns anos depois daquela ataque de pânico, estava no meio de uma multidão branca num festival de música, com uma mochila que tinha alguns fios dentro. Abri para pegar alguma coisa e senti uma gratidão aguda que ninguém parecia ter medo de mim. Senti até culpa por tê-los colocado em uma situação que poderia ser interpretada como perigosa. Eu sou a bomba, percebi. Sou a bomba. Não tinha me tornado a mulher branca aterrorizada; em vez disso, o pânico, o nojo, o medo e o teatro grotesco dela tinham encontrado um lar dentro de mim. Tinham florescido ao ponto da saturação. Via explosões por toda parte porque finalmente estava pronta para explodir.

“Escuta, foi sem querer”, gritei para a mulher aterrorizada da ioga. Você também pode chamar de afirmação audível, ou algo tangível num oceano de cabeça desgraçada. Inocente. Sou inocente. Sempre fui. “Então, se você se acalmar, eu agradeço, porra.”

Fui embora esperando a visita do remorso, da vergonha ou da ansiedade, como sempre acontece depois de alguma confrontação em que me envolvo em ambientes de brancos. Mas eles não vieram, e no espaço que eles costumam habitar senti algo como paz, ou pelo menos silêncio.

Depois pergunto para os meus amigos: “É assim que você se sente quando está cagando para tudo? Será que minha hora finalmente chegou?”

“O doce domínio sobre as emoções brancas”, responde N com um sorriso. R, poeta, diz: “Quero que a intolerância deles morra em público. Quero matá-la o suficiente para que se torne humana”. Emergindo de uma nuvem de fumaça de cigarro, P anuncia: “Acho que a princesa Jasmine foi a primeira mulher não-branca por quem me apaixonei. Ela era uma princesa não-branca incrível, até os brancos estragarem tudo”. Nos olhamos e rimos.

Semana passada, no trabalho, uma colega me puxou para um canto e disse: “Estou tentando trabalhar um negócio na terapia, mas, se não conseguir, vou ter de te contar uma bomba, OK?” Respondi “OK”, mas também poderia ter dito: “Por que é que os brancos sempre querem contar bombas?”, ou então: “Desculpe, esse aterro sanitário está lotado”, ou: “Será que em 2017 as brancas podem se acalmar?”

Não sei se gostei de dormir com brancas porque sou gay ou porque elas cheiram tão bem. Como se eu quisesse apertar meu corpo contra o delas para pegar um pouco daquela limpeza. Só queria me sentir limpa. E queria cheirar bem. Esses dias mascaro meu cheiro com o perfume de rosas e uma fragrância da Burberry que custa caro demais. Todo mundo diz que cheiro bem, mas não trepo mais com mulheres brancas. ●

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Aisha Mirza é escritora e consultora. Ela nasceu em Londres e hoje mora em Nova York.

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Este post foi traduzido do inglês.

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