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Como cinco homens morreram linchados após a disseminação de um boato no WhatsApp

Em julho, moradores de um vilarejo na Índia receberam por WhatsApp um vídeo que dizia que uma gangue estava sequestrando crianças para vender seus órgãos. Então, quando cinco desconhecidos chegaram à aldeia, eles foram linchados.

Horas após uma turba de camponeses linchar cinco desconhecidos por causa de um boato no WhatsApp, ninguém queria limpar o sangue: simplesmente era muito sangue.

Era uma poça de quase dois metros de comprimento no chão do escritório do conselho do vilarejo de Rainpada. As paredes e os retratos empoeirados de Mahatma Gandhi e de políticos indianos na sala também ficaram manchados. Até o teto tinha respingos. Naquela noite, o conselho do vilarejo ofereceu 5.000 rúpias (US$ 70) a 5 trabalhadores de uma vila vizinha para fazerem a limpeza. Eles vieram e enxugaram o sangue com saris velhos. Então os queimaram e enterraram as cinzas.

Cinco dias depois da tragédia, a polícia já tinha detido a maioria dos suspeitos. Cada um admitiu ter atacado os cinco homens — todos nômades que passavam por Rainpada, uma aldeia rural a 320 km ao sul de Mumbai — e todos disseram que fizeram isso após assistirem a vídeos chocantes no WhatsApp, avisando sobre homens que raptavam crianças.

Os suspeitos agora estão esperando julgamento. “A posição de nossos clientes é que eles sinceramente pensaram que as cinco pessoas eram sequestradoras de crianças, por terem visto por meses este tipo de informação no WhatsApp”, disseram ao BuzzFeed News Akshay Sagar e Manoj Khairnar, dois dos quatro advogados designados pelo Estado para representar os 28 acusados.

O WhatsApp, serviço de mensagem pertencente ao Facebook, é usado por mais de 200 de milhões pessoas na Índia, seu maior mercado. Ele se tornou parte indissociável da cultura e da estrutura social do país, sendo amplamente usado tanto por gerações mais jovens quanto mais velhas. É uma das joias da coroa de Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, que adquiriu o aplicativo por US$ 19 bilhões em 2014.

Ultimamente, no entanto, o WhatsApp fez indianos serem mortos. Em junho, boatos disseminadas pelo Whatsapp sobre sequestradores de crianças levaram uma turba de centenas de pessoas a linchar um homem de 29 anos e seu amigo. Os dois estavam viajando por uma vila em Karbi Anglong, distrito na parte leste do país. Em julho, duas semanas após o incidente de Rainpada, centenas de pessoas atiraram pedras em um trabalhador de TI que estava visitando a vila de Murki, no sul da Índia, matando-o. Desde maio, houve ao menos 16 linchamentos na Índia, resultando em 29 mortes. Segundo funcionários públicos, os linchamentos foram incitados por informações falsas disseminadas via WhatsApp.

Se nos Estados Unidos o Facebook enfrenta desde 2016 uma crise de confiança pública por seu papel na disseminação de fake news durante a campanha presidencial de 2016, em lugares como Rainpada os produtos da empresa têm instigado danos físicos. Na tentativa de cumprir a atual missão do Facebook — "dar às pessoas o poder de construir comunidades e aproximar o mundo" — Zuckerberg e sua equipe de executivos do Vale do Silício falharam em prever suas aplicações malignas: informações falsas, propaganda, boatos e ódio.

O vídeo de 34 segundos termina com uma ordem: "Compartilhe este vídeo em todos os seus grupos de WhatsApp. Quem não fizer isso não tem mãe."

Existem consequências humanas para o método de crescimento a qualquer custo do Facebook no mundo em desenvolvimento. Em Myanmar, o discurso de ódio disseminado no aplicativo Messenger (da empresa) amplificou os chamados para o genocídio de muçulmanos Rohingya. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte alimentou a raiva e o medo no Facebook a serviço de uma brutal guerra contra as drogas. No Brasil, grupos antivacinação espalharam informações falsas no WhatsApp sobre a vacina contra a febre amarela, contribuindo para um aumento comprovado da doença. E, na Índia, camponeses — muitos lidando com a internet pela primeira vez — entram em frenesi após assistirem a vídeos virais encaminhados por fontes desconhecidas sobre supostos sequestradores de crianças.

Os vídeos, cujas origens são impossíveis de rastrear por causa da criptografia do WhatsApp, circulava nos grupos de WhatsApp da Índia meses antes do incidente em Rainpada. Um deles, visto pelo BuzzFeed News, mostra a imagem granulada de uma mulher com uma burca — uma alusão aos muçulmanos — antes de agarrar com força uma criança pelo braço e ir embora. Outro vídeo apresenta uma imagem estática de uma criança estripada acompanhada de uma locução de alerta contra traficantes de órgãos humanos. O vídeo de 34 segundos termina com uma ordem: "Compartilhe este vídeo em todos os seus grupos de WhatsApp. Quem não fizer isso não tem mãe."

Em 3 de julho, dois dias depois dos linchamentos em Rainpada, o Ministério da Tecnologia da Informação da Índia publicou uma declaração pública condenando as "mensagens irresponsáveis e explosivas cheias de boatos e provocações" no WhatsApp e dizendo que a empresa não poderia "fugir da obrigação de prestar contas e se responsabilizar” pelo que circulava no aplicativo.

No dia seguinte, o WhatsApp respondeu ao ministério, dizendo estar "horrorizado por estes atos terríveis de violência", mas argumentando que uma solução eficaz para as informações falsas exigiria a ajuda do governo. O WhatsApp fez algumas alterações no aplicativo, adicionando etiquetas de "encaminhado" para mensagens reenviadas e limitando para cinco o número de pessoas ou grupos para quem um usuário na Índia pode encaminhar mensagens. Além disso, publicou em mais de 30 jornais anúncios de página inteira (em sete idiomas) com dicas sobre como reconhecer informações falsas. Mais recentemente, a empresa lançou uma campanha de rádio alertando as pessoas sobre o perigo das fake news.

O governo indiano, no entanto, espera por mais e já pediu ao WhatsApp para desenvolver ferramentas para ajudar a rastrear a origem das mensagens falsas, para que as autoridades possam ir atrás de seus criadores.

Carl Woog, porta-voz do WhatsApp, deu a seguinte declaração ao BuzzFeed News: "Acreditamos que construir a 'rastreabilidade' no WhatsApp iria comprometer a criptografia ponta a ponta e a natureza privada do WhatsApp, criando o potencial para graves abusos. À medida que avançamos, o WhatsApp permanece comprometido a trabalhar em parceria com outros para combater informações falsas, mas não enfraqueceremos as proteções à privacidade que oferecemos".

O WhatsApp, assim como muitas outras plataformas conectadas à internet, tem defendido repetidamente que não deve ser responsabilizado pelo conteúdo que seus usuários distribuem. Fundado em 2009 por Jan Koum e Brian Acton e adquirido pelo Facebook em 2014, o WhatsApp tem se concentrado em construir ferramentas para permitir que as pessoas compartilhem informações com segurança e rapidez, opondo-se fortemente à ideia de que deveria moderar o que é disseminado por seus usuários.

E o que acontece quando uma incitação à violência pode ser compartilhada instantaneamente com centenas de pessoas que, por sua vez, podem, cada uma, compartilhar com outras centenas?

No entanto, o foco no compartilhamento fácil e privado não levou em conta os efeitos de segunda e até de terceira ordem em escala: o que acontece quando há mais de um bilhão de pessoas usando o serviço? O que acontece quando algumas dessas pessoas têm um entendimento limitado da tecnologia que estão usando? E o que acontece quando uma incitação à violência pode ser compartilhada instantaneamente com centenas de pessoas que, por sua vez, podem, cada uma, compartilhar com outras centenas?

Linchamentos não são um fenômeno novo na Índia. De acordo com algumas pesquisas, houve mais de 2.000 linchamentos na Índia entre 2000 e 2012 — bem antes do WhatsApp aparecer. No entanto, resta pouca dúvida de que o WhatsApp tenha potencializado o problema.

Para Rashmi Sinha, empreendedora da área de tecnologia nascida na Índia, há uma correlação clara entre o aumento de linchamentos, o crescimento do WhatsApp na Índia e a velocidade que o aplicativo pode disseminar informações — e boatos.

"No final das contas, foi uma turba que linchou as pessoas, não o WhatsApp. Mas, se você quer que o software seja utilizado e as pessoas tenham um relacionamento de longo prazo com o app, não pode haver desilusão ou problemas com a plataforma."

Woog disse que a empresa "se preocupa profundamente com a segurança" dos usuários em todo o mundo. "Estamos horrorizados pela violência e pelos assassinatos que aconteceram na Índia no início deste ano e acreditamos que este é um desafio que requer ação do governo, da sociedade civil e de empresas de tecnologia." Ele apontou para os esforços da empresa em informar os usuários sobre o risco de informações falsas em mensagens encaminhadas, incluindo anúncios na rádio e "treinamento educacional digital" para os líderes comunitários onde a violência ocorreu.

Mas qualquer solução que o WhatsApp e o governo indiano encontrarem já virá tarde demais para os que foram mortos. Hoje Rainpada está vazia. A maioria dos homens fugiu de lá, temendo investigações da polícia que poderiam implicá-los ou implicar seus familiares. Um dos poucos lembretes do que aconteceu naquele sufocante domingo de julho é uma mancha rosa desbotada no chão do conselho do vilarejo.

Como o WhatsApp chegou a Rainpada

A menos que um nativo de confiança esteja te guiando, é difícil encontrar Rainpada. Não há placas nem marcos. Para chegar lá, você corta por Pimpalner, cidade de 23.000 habitantes, cerca de 26 quilômetros ao leste, e segue a estrada à medida que ela suavemente se encurva para o oeste. Em minutos, os prédios somem e a estrada se reduz a uma pista de terra com brilhantes campos verdes de milho nagali em ambos os lados, interrompidos apenas por casas feitas de barro com telhados de palha.

Por anos, as milhares de pessoas neste vilarejo localizado no extremo oeste de Dhule — um distrito que o governo da Índia conta entre os menos desenvolvidos do país — têm levado uma vida simples, trabalhando duro pela subsistência, vendendo milho para atacadistas na cidadezinha mais próxima.

No entanto, nos últimos anos, as gerações mais jovens da região têm migrado para a cidade de Surat, a 160 quilômetros de distância, para encontrar emprego como trabalhadores assalariados diaristas. De acordo com um relatório econômico publicado em seu site oficial, um morador típico de Dhule, o distrito onde fica Rainpada, ganha menos que US$ 100 por mês — menos que a média do salário per capita da Índia, que é de US$ 133. A maioria das pessoas nem mesmo pode pagar pela eletricidade. Apenas 63% da população da região no entorno de Rainpada sabe ler e escrever, um dos menores índices de alfabetização da Índia.

Ainda assim, muitos dos jovens de Rainpada anseiam por um smartphone Android — e pelo WhatsApp. "A maioria das pessoas do meu vilarejo não sabe ler", disse Sunil Popat Bhairam, estudante de 21 anos de ciências sociais de uma aldeia vizinha de Rainpada. "Eles não têm nem ideia do que é 'www ou 'internet' ou 'dados'. O que eles sabem é que eles podem usar o WhatsApp para ver e compartilhar vídeos." O WhatsApp é o aplicativo mais usado na Índia — a frente do Gmail e do YouTube — e dados mostram que o montante de usuários ativos do WhatsApp na área rural da Índia dobrou desde 2017.

A internet chegou a Rainpada graças à guerra das telecom no país, que reduziu drasticamente os preços dos planos de dados para celular. Toda noite, as colinas ao redor de Rainpada e de outras dezenas de vilas em Dhule ganham vida com o brilho de centenas de smarphones Android — o sinal é muito mais forte no topo das colinas do que nas vilas. Lá, as pessoas trocam filmes, músicas, pornografia e boatos pelo WhatsApp; além disso, usam o aplicativo para conversar com amigos e familiares que se mudaram para cidades maiores em busca de estudo e trabalho.

"Não acredito nos boatos. Mas ninguém na minha vila lê ou assiste à TV. Eles só recebem notícias pelo WhatsApp, então não sabem no que acreditar."

"Como eu, a maioria das pessoas que migrou para estudar ou trabalhar está em pelo menos alguns grupos de WhatsApp de seus vilarejos", disse Sandeep Wadhwe, estudante do 2º ano de graduação que veio de Mullge, uma pequena vila de 1.500 habitantes. Wadhwe está em dois grupos de WhatsApp relacionados a Mullge: um para jovens da vila — tanto aqueles que ainda estão lá quanto os que já saíram — e um grupo oficial da vila — que inclui os cabeças do conselho, um contato policial e membros de umas poucas famílias proeminentes.

"Estes são os grupos que recebem mensagens encaminhadas de pessoas como eu, que se mudaram", disse ele. "É assim que estas mensagens chegam." Uma vez que as pessoas mais importantes da vila têm conhecimento das informações, o boca a boca faz o resto. "Sou mais esclarecido que as pessoas da minha vila, por isso não acredito nos boatos. Mas ninguém na minha vila lê ou assiste à TV. Eles só recebem notícias pelo WhatsApp, então não sabem no que acreditar."

Isso é parte do problema, de acordo com a pesquisadora Renée DiResta. As pessoas tendem a confiar em coisas que recebem de amigos e de familiares, disse ela, e, "na ausência de vozes externas, os grupos podem se tornar câmaras de eco" onde os participantes evitam contestar informações para não incomodar a comunidade.

Uma atividade popular durante estes programas noturnos é trocar aplicativos por meio de utilitários de compartilhamento de arquivos, como Sharelt e Xender, dispensando o uso da Play Store do Google, que exige uma conta do Google. Isso significa que a maioria das pessoas rodam versões antigas do WhatsApp que não suportam os recursos antidesinformação mais recentes das empresas, como rotular mensagens encaminhadas. Quando o BuzzFeed News checou os celulares de dezenas de jovens da região, apenas um único aparelho estava rodando a versão mais recente do WhatsApp.

Em maio, Sunil Jagtal, jovem de 22 anos de Allihabad, vilarejo a 72 quilômetros de distância de Rainpada, abriu o WhatsApp para ver um vídeo que alertava a população sobre supostos sequestradores de crianças. O vídeo havia sido enviado por um amigo que trabalhava como lavador de louças em uma cidade próxima, mas sua origem era incerta. As imagens mostravam dezenas de crianças mortas com uma voz masculina alertando em hindi sobre estrangeiros que estariam roubando crianças por causa dos seus órgãos. Jagtap não encaminhou o vídeo para seus grupos, mas viu que outras pessoas estavam fazendo isso.

Acontece que aquelas imagens não eram da Índia. Uma análise do BuzzFeed News confirmou que o vídeo mostrava fotos tiradas na Síria após um ataque de armas químicas.

ATENÇÃO: IMAGENS FORTES

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ATENÇÃO: IMAGENS FORTES Acima, vídeo que espalhou boatos sobre sequestros de crianças. O BuzzFeed News providenciou legendas traduzidas (em inglês) na parte inferior do vídeo. Elas dizem: “A polícia de Tamil Nadu encontrou os corpos dessas crianças em um contêiner. Partes internas haviam sido removidas, como os rins e fígados. A polícia de Tamil Nadu disse que essas crianças foram sequestradas em diferentes países. Por favor, mantenha suas crianças em segurança e tome conta delas. Mande esta mensagem para todos os seus grupos. Esta foto deve se espalhar até o cachorro que fez isso ser pego. Quem não encaminhar esta mensagem não tem mãe. Não importa quantos grupos seu telefone tenha, 1, 2, 3, 4 ou 25. Mande para todos. Este criminoso deve ser pego.”

As pessoas de Rainpada e seus vilarejos vizinhos não sabiam de onde vinham os vídeos e tinham poucos motivos para questionar sua autenticidade. Afinal, eles tinham sido enviados por amigos ou familiares em seus grupos de WhatsApp.

Quando cinco forasteiros apareceram na aldeia em uma manhã de domingo, a maioria das pessoas já tinha visto ou pelo menos ouvido sobre os boatos, independentemente de ter um smartphone ou não.

Um massacre no domingo de manhã

Sakharam Pawar, membro do conselho do vilarejo de Rainpada, tinha ouvido boatos sobre sequestradores de crianças meses antes do linchamento acontecer — mas apenas por meio de seus vizinhos e seus filhos. "Eu não uso smartphone; eu tenho um celular básico há seis anos", disse ao BuzzFeed News, mostrando um Nokia antigo. "Eu não tenho nada a ver com o WhatsApp. Eu só estudei até a quarta série e eu não sei ler nem escrever."

Em Mullangi, outro vilarejo a cerca de dez quilômetros de Rainpada, boatos sobre sequestradores de crianças vinham aterrorizando os moradores há semanas. "As pessoas deixavam de ir trabalhar nos campos pois não queriam deixar seus filhos sozinhos em casa", disse Suresh Gaikwad, moradora de Mullangi.

“Em certo ponto, eles queriam queimá-los vivos no pátio externo do escritório do conselho.”

Na manhã de 1º de julho, quando cinco estranhos visitaram Rainpada, eles chegaram a uma comunidade ferida pelo medo e pela ansiedade. Os homens eram membros de uma tribo nômade do nordeste de Maharashtra, o Estado indiano que compreende Rainpada, e vieram para participar no mercado semanal. Quatro dos cinco eram da mesma família.

Pawar estava sentando na entrada de sua casa quando ouviu uma comoção por volta das 9h30 da manhã. No início, ele disse que ignorou o barulho, pensando que era uma briga de bêbados. Então, os gritos aumentaram.

Ele calçou seus chinelos de borracha e foi investigar. Na hora que chegou na fonte do barulho, os cinco forasteiros já estavam ensanguentados. Seus dhotes estavam tortos, suas kurtas rasgadas em retalhos e uma turba de 40 homens batia neles com chinelos, pedras e com os próprios punhos. Uma multidão de centenas de espectadores os aplaudiam. Dezenas de pessoas gravavam vídeos do ataque com o celular, postando-os em grupos de WhatsApp. A polícia de Dhule mais tarde utilizou as gravações para identificar os suspeitos e fazer as detenções.

M. Ramkumar, superintendente da polícia de Dhule na época, disse que o incidente começou em Gotilamba, minúscula vila localizada 400 metros de distância de Rainpada, onde os cinco homens tinham desembarcado de um ônibus, pretendendo andar o resto do caminho até o bazar semanal. Foi lá, disse Ramkumar, que um dos homens viu uma menina de 9 anos e, supostamente, teria oferecido biscoitos para ela. De acordo com o superintendente de polícia e os advogados de alguns dos 28 acusados, esse ato aparentemente benigno inspirou um estudante de 22 anos chamado Maharu Pawar (nenhuma relação com o membro do conselho da vila) a dar um alarme. Pawar parou os homens e começou a questioná-los; outros rapidamente seguiram seu exemplo. “[Pawar] é um jovem, um usuário típico de smartphone e WhatsApp daquela região”, disseram ao BuzzFeed News os advogados Akshay Sagar e Manoj Khairnar, que representam Pawar e dezena de outras pessoas no caso.

Não está claro como a situação escalou para a violência, mas uma vez que o linchamento começou, a turba bateu nos homens por cerca de uma hora, apesar dos apelos de um pequeno grupo de que deveriam esperar pela chegada dos policiais de um posto avançado a 16 quilômetros dali. Pawar, o membro do conselho do vilarejo, e outros poucos intervieram e, defendendo-se de golpes, conseguiram levar os homens para o escritório do conselho da vila de Rainpada. Eles os trancaram no edifício e bloquearam as janelas de madeira.

Mas isso não deteve a turba. A crescente multidão derrubou a porta da frente, arrebentou as janelas e correu para dentro. “Eles queriam queimá-los vivos no pátio externo do escritório do conselho”, disse Ramkumar, que foi transferido de seu posto pelo governo do Estado em agosto.

Um vídeo do incidente visto pelo BuzzFeed News mostra um jovem rapaz atacando uma das cinco vítimas na cabeça, com uma grande pedra, bem depois de ela estar claramente morta. Também mostra um membro da turba checando calmamente o pulso de uma das vítimas, dentro do escritório do conselho do vilarejo. “Ainda está vivo!” gritou em marata, a língua local, antes de começar a atingi-lo com um tijolo. Um relatório do hospital mais tarde apontou a causa das cinco mortes: crânios fraturados.

“Eu moro aqui desde criança e este vilarejo não tem histórico de violência.”

“As pessoas ficaram fora de controle”, disse Sagar, o advogado. “Foi só uma turba enfurecida que evoluiu para algo terrível. Até onde eu sei, ninguém teve nenhum outro motivo além da preocupação com a segurança de suas crianças por causa do que viram e ouviram.”

Vinte seis dos 28 suspeitos de participarem do linchamento têm entre 20 e 25 anos e usam o WhatsApp, disse Ramkumar. “Acho que eles foram influenciados pelo que viram no WhatsApp”, afirmou, chamando o incidente de o mais sangrento que viu em 20 anos na força policial. “Não podemos negar que o aplicativo teve parte da culpa.”

Pawar, membro do conselho da vila, concorda com Ramkumar. Segundo ele, a fúria da turba foi alimentada pela capacidade do WhatsApp de disseminar boatos. “Não há nenhuma outra razão”, disse ele. “Eu moro aqui desde criança e este vilarejo não tem histórico de violência.”

Um novo presidente viaja para a Índia

Para o Facebook, 2018 tem sido um ano de escândalos e pedidos de desculpas. Em abril, enquanto testemunhava perante os legisladores dos EUA, Mark Zuckerberg discutiu a ingenuidade da empresa em seus esforços de silenciar a ameaça de hackers russos e operações de fake news. Segundo ele, a reação lenta da rede social frente a esses problemas é um de seus "maiores arrependimentos". Zuckerberg admitiu nas audições com os membros da Câmara dos Deputados e do Senado dos EUA que os produtos feitos pelo Facebook para conectar pessoas foram também usados para semear divisão e discórdia.

No final de agosto, sob pressão da mídia e dos legisladores indianos, o presidente do WhatsApp, Chris Daniels, foi para a Índia se encontrar com políticos locais, embora não tenha visitado o vilarejo em que ocorreu o linchamento. Até aquela data, nenhum executivo do WhatsApp tinha.

Os defensores do WhatsApp argumentam que um serviço de mensagem não deveria ser responsabilizado pela comunicação de seus usuários. Você não responsabilizaria um provedor de telefonia se um usuário planejasse um ataque à bomba pelo telefone, dizem eles. Sim, está claro que o WhatsApp tem agravado alguns problemas sociais e culturais na Índia. Certamente, ele tornou possível que informações falsas (e, sim, também informações confiáveis) se disseminassem mais rápido e mais longe que nunca — chegando mesmo a lugares remotos como Rainpada.

Para Rashmi Sinha, a empreendedora de tecnologia, o problema é que o WhatsApp foi projetado e construído nos EUA, mas agora está sendo implantado em diferentes mercados ao redor do mundo, onde os costumes sociais e os comportamentos online variam. Na opinião dela, o produto original foi desenvolvido “para remover todo o atrito do compartilhamento” sem instruções para “contextualizar ou comentar” o conteúdo encaminhado, um precedente perigoso que — quando colocado em um ambiente onde as pessoas são menos instruídas e menos experientes no uso da web — pode ter consequências terríveis.

Embora o WhatsApp provavelmente implemente um chefe de relações governamentais com sede na Índia para lidar com as questões no país, a empresa não se curvou à maior demanda do governo: a rastreabilidade das mensagens. Orgulhando-se de um princípio fundamental de privacidade do usuário, o WhatsApp emprega criptografia de ponta a ponta em sua plataforma, tornando impossível a visualização ou o acesso ao conteúdo enviado entre usuários. Os agentes indianos, na esperança de entender de onde os vídeos com informações falsas têm vindo, querem que o WhatsApp desenvolva uma alternativa.

"Não é preciso muita ciência para localizar uma mensagem", disse o ministro de TI da Índia, Ravi Shankar Prasad, após se encontrar com Daniels em agosto. Ele observou que os "desdobramentos sinistros" causados ​​pelo WhatsApp — boatos sobre sequestro de crianças e os linchamentos que eles inspiraram — equivaleram a uma "violação das leis indianas".

Por enquanto, o problema é que a solução mais óbvia para resolver a disseminação de vídeos de sequestro de crianças na Índia é diametralmente oposta a um princípio básico dos negócios do WhatsApp. E embora o WhatsApp por ora tenha escapado por várias vezes apenas com um tapinha na mão, relatórios mostram que o governo tem pedido aos provedores de telecom para explorarem a possibilidade de bloquear o Facebook, WhatsApp e outros aplicativos de mensagens durante emergências, o que sugere que a empresa poderia enfrentar problemas no futuro.

Zuckerberg ainda tem que reconhecer publicamente os incidentes de linchamento, mas durante uma apresentação sobre os lucros do Facebook, no final de julho, ele falou de maneira genérica sobre a batalha da empresa contra as fake news antes das próximas eleições nos EUA e no exterior; a eleição geral da Índia é no ano que vem. Ele também falou com entusiasmo de um teste, que está sendo feito na Índia, para permitir que pagamentos sejam feitos via WhatsApp.

"Mark está preocupado com a violência, assim como todos nós, e está envolvido em discussões para ajudar a conter abusos", disse um porta-voz do Facebook ao BuzzFeed News quando questionado se Zuckerberg estava ciente dos linchamentos na Índia.

"Por que vocês estão acreditando neste absurdo no WhatsApp?"

Como o WhatsApp teve dificuldades para conter problemas de fake news que vitimaram pessoas reais, as autoridades locais tomaram medidas por elas mesmas.

Em 1º de julho, duas horas depois de as cinco pessoas terem sido espancadas até a morte em Rainpada, dois policiais entraram na minúscula Redação da AE Vision, canal local de TV a cabo escondido em uma ruazinha no centro de Dhule, cidade de 400 mil pessoas e um das maiores no distrito de mesmo nome. "Pegue uma caneta e papel", disseram a Rajesh Pathak, editor-chefe do canal. "Anote este texto e transmita-o para seus espectadores." Foi uma ordem, não um pedido.

“Qualquer um que for pego praticando violência ou divulgando estas mensagens será preso e processado.”

Em 30 minutos, Pathak e os dois oficiais redigiram um aviso. "As mensagens sobre sequestradores de crianças enviadas pelo WhatsApp podem ser enganosas e pedimos que vocês não acreditem nelas", dizia a nota na língua marata. “Qualquer um que for pego praticando violência ou divulgando estas mensagens será preso e processado.”

“Tenho sido o editor deste canal por 11 anos e houve alguns casos de distúrbios aqui e ali, mas nunca recebi uma ordem da polícia para fazer algo assim antes”, disse Pathak.

A mensagem foi veiculada nas 48 horas seguintes no formato de uma legenda rotativa constante na parte inferior da tela e transmitida para os mais de 100.000 espectadores do canal em todo o distrito. No dia seguinte ao linchamento, as autoridades também desligaram o acesso à internet na área por 24 horas. "Não queríamos que os vídeos sobre o linchamento e boatos sobre sequestradores de crianças se espalhassem ainda mais", disse ao M. Ramkumar, ex-superintendente da polícia de Dhule.

Desde que relatos de linchamentos estimulados por mensagens no WhatsApp começaram a surgir em maio, as autoridades em Dhule tentavam elaborar maneiras de alertar as pessoas na região, disse Ramkumar. A brutalidade dos assassinatos de Rainpada deu o empurrão para que eles entrassem em ação.

Indo além de transmitir avisos nos canais locais de notícias a cabo, as autoridades também distribuíram panfletos na língua marata em Dhule e em seu entorno. Eles também colocaram apelos nos jornais locais. Mais importante, usaram o próprio WhatsApp para espalhar suas mensagens, construindo uma pirâmide de grupos do WhatsApp com oficiais de polícia designados para monitorar certos grupos de vilas. Cada delegacia no distrito seria responsável por 100 aldeias.

“Tudo que precisamos fazer sistema é enviar nossas mensagens antidesinformação para o grupo principal e observar estas mensagens percorrerem todo o caminho até os grupos de aldeias em todo o distrito”, disse Ramkumar.

Visite uma vila em Maharashtra hoje e você poderá ver uma das centenas de cartazes fixados pelas autoridades por todo o distrito, com grandes logotipos azuis da polícia e números de telefone das delegacias. Em Rainpada, um desses cartazes está esticado entre as duas hastes de metal que sustentam o nome da aldeia, ao lado de um longo trecho de estrada varrido pela chuva, não muito longe de onde os cinco homens foram mortos. Os habitantes dizem que é meio que consertar a cerca depois que o cavalo escapou; ele foi colocado uma semana depois dos linchamentos.

Às cinco horas da tarde, em uma abafada quinta-feira de julho, um grupo de nove universitários estava em um grande pátio, de frente para uma multidão de quase cem meninas sentadas de pernas cruzadas no chão.

Desde o linchamento de Rainpada, estes estudantes viajam pelo distrito pelo menos duas vezes por semana para apresentar uma peça de rua de 16 minutos, cujo título em marata se traduz livremente como “Não Brinque Com As Vidas Das Pessoas, Não Caia em Boatos". A apresentação desta noite é em Dhule, em um albergue administrado pelo governo para garotas de aldeias tribais vizinhas, como Rainpada.

"É importante sensibilizar os jovens que se mudaram de suas aldeias para cidades como Dhule sobre as fake news", disse Shahaji Shinde, que dirige uma ONG baseada em Dhule chamada Navanirmiti Sanstha. “Eles são os que usam telefones Android e WhatsApp. Eles são os canais por meio dos quais as notícias falsas chegam até os vilarejos.”

Por quase uma década, a organização de Shinde vem lidando com as questões de educação e trabalho que afetam as pessoas mais pobres em Dhule. Antes, eles não consideravam trabalhar com tecnologia ou questões envolvendo informações falsas. No entanto, o incidente em Rainpada convenceu Shinde de que a baixa taxa de alfabetização da região e os níveis de pobreza – combinados com a disseminação de informações falsas pelo WhatsApp – eram uma combinação mortal.

Uma semana após o linchamento, Shinde, junto com os nove estudantes que se voluntariaram em sua ONG, foram até a polícia de Dhule e propuseram uma parceria: eles comporiam e apresentariam uma peça de rua no dialeto Ahirani local por toda região. Em troca, pediram proteção policial — eles não queriam ser confundidos com os supostos sequestradores de crianças.

"Eu prometo não espalhar notícias falsas ou desinformações que perturbem a ordem social".

As autoridades concordaram. Shinde e seu grupo de voluntários já apresentaram cerca de 12 peças de rua sobre informações falsas no WhatsApp.

“É um formato eficaz nestas áreas”, disse Shinde. "Um discurso não funciona aqui, mas se você adicionar humor e criar uma cena apropriada, fará com que sua mensagem seja transmitida."

A peça de Shinde é simples e apresentada sem adereços, aonde quer que haja uma multidão. Ela explica como as informações falsas no WhatsApp se espalham em um ambiente familiar rural: uma mulher recebe uma chamada de seu marido alertando-a a manter os filhos protegidos porque viu um vídeo no WhatsApp; a mulher não usa um smartphone, mas ainda assim espalha o boato para seus vizinhos, que, por sua vez, espalham para o resto da vila. Na cena final, tirada diretamente do incidente de Rainpada, um vendedor de lençóis que não fala o idioma local oferece chocolate para uma criança e é abordado por uma turba irada justamente por causa dos boatos de sequestros de crianças.

No momento em que a turba está prestes a matá-lo, o próprio Shinde pula na frente da briga e salva o homem. Então ele pergunta para a turba — e para a plateia — como eles têm tanta certeza de que o homem é um sequestrador de crianças.

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Trecho de uma peça de rua que alerta sobre as fake news no WhatsApp. Legendas em inglês fornecidas pelo BuzzFeed News.

"Por que vocês estão acreditando neste absurdo no WhatsApp?", gritou, segurando seu telefone. "Você já viu realmente alguém sequestrando crianças? Você já viu alguma criança com seu rim removido? Estas mensagens foram enviadas pelo WhatsApp para perturbar a harmonia social. Eles são os motivos do que aconteceu em Rainpada. Fique avisado: se você espalhar esses boatos, a polícia vai te prender!"

Ao final da peça, Shinde pediu ao seu público de pernas cruzadas que se levantasse. "Vamos todos fazer uma promessa", disse, levantando sua mão. "Eu prometo não espalhar notícias falsas ou desinformações que podem perturbar a ordem social. Eu prometo cumprir minhas obrigações. Eu prometo ser um cidadão responsável e fazer minha parte pelo meu país."

Uma cidade-fantasma

Três semanas após os assassinatos em Rainpada, o vilarejo se transformou em uma cidade-fantasma. Horas após o incidente, centenas de pessoas já haviam fugido, temendo a repressão da polícia.

O único som é o da chuva e o nhec-nhec do seus sapatos, uma vez que o caminho lamacento suga seus pés para dentro do chão. Uma brilhante cobra verde desliza preguiçosamente pelo caminho e desaparece nos campos ao redor, e galinhas solitárias cacarejam do lado de fora das casas de barro abandonadas. As únicas pessoas na rua são crianças brincando, supervisionadas pelos seus avós.

“As pessoas nos perguntam: Você não está envergonhado de pertencer àquela vila? Vocês não têm coração? Como vocês podem ter feito o que fizeram?"

Daulat Tungya Babul, velho fazendeiro de 59 anos, possui uma fazenda nagali de 3 acres na extremidade da vila. Babul passa a manhã arando o campo com dois bois, seu corpo manchado de lama marrom escura. Atrás dele, dez pessoas trabalham.

Desde que os habitantes da vila abandonaram Rainpada, Babul, que ganha menos que 5.000 rúpias (US$ 70) por mês, tem tido que contratar trabalhadores nas vilas vizinhas para trabalhar nos campos. Cada trabalhador cobra dele 120 rúpias (US$ 1,70) por dia, comprometendo substancialmente sua renda mensal.

“Estou envergonhado de sair de Rainpada depois do que aconteceu”, disse no dialeto local ahirani. “Toda vez que saímos, as pessoas nos perguntam: Vocês não sentem vergonha de pertencerem àquela vila? Vocês não têm coração? Como vocês podem ter feito o que fizeram?”

Babul não usa celular e disse que, na idade dele, não planeja usar. Ele nunca ouviu falar do WhatsApp. “Não tenho certeza se o vilarejo vai algum dia se recuperar do que aconteceu”, disse. Ele cruzou as mãos e chorou. “Mas eu estou velho. Estou pensando em construir uma casa pequena naquelas colinas ali e viver em paz longe de tudo isso.” ●


Colaborou Pravin Thakare.


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