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Este é o raio X da dívida bilionária que levou o Grupo Abril à lona

Como foi a reunião no auditório em que a empresa prometeu aos demitidos pagar as rescisões em 10 parcelas e o choque que tiveram ao descobrir que não há prazo para receber porque o conglomerado entrou em recuperação judicial.

Nas 148 páginas da relação de credores que o Grupo Abril protocolou na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo tem de tudo: de bancos e grandes produtoras internacionais de conteúdo a postos de gasolina e pequenos prestadores de serviços. No total, o conglomerado pediu uma trégua para tentar negociar o pagamento de R$ 1,6 bilhão.

A maior editora de revistas do país e seus braços de logística e distribuição deixaram em suspenso fornecedores de papel (Stora Enso e Suzano são credoras de R$ 7,5 milhões) e a conta de telefone (Telefônica, quase R$ 17 milhões). Outros R$ 68 milhões estão espalhados por 680 microempresas.

À Walt Disney Company o grupo brasileiro deve R$ 3,8 milhões – algo simbólico dado que a origem do grupo remonta a 1950, quando o judeu italiano Victor Civita (1907-1990) licenciou e começou a publicar no Brasil os quadrinhos do Pato Donald.

Conforme os papéis protocolados na Justiça, o maior credor individual da Abril é a empresa Planner Trustee, uma corretora de valores sediada na Faria Lima, em São Paulo, com R$ 1 bilhão a receber no processo.

A Planner diz que não comprou, ela própria, créditos do grupo, mas que figura na lista porque é o agente fiduciário de duas emissões de debêntures da companhia. O grosso desse dinheiro, segundo o BuzzFeed News apurou, pertence a bancos que financiaram a Abril em mais de duas décadas de endividamento crescente.

Dentro da dívida de R$ 1,6 bilhão, R$ 110 milhões referem-se a débitos reconhecidos com 2.659 funcionários e ex-funcionários do grupo, conforme os autos do processo.

No total, os débitos trabalhistas ou resultantes de indenizações de acidentes de trabalho – que têm prioridade de pagamento no processo de recuperação da empresa – representam menos de 7% do total da dívida do grupo. A dívida reconhecida pela empresa com três membros da família Civita, para efeito de comparação, é de R$ 172,7 milhões.

Os débitos com os herdeiros do fundador Victor Civita são de natureza quirografária – isto é, referem-se a aportes no passado e só poderiam ser saldados junto com os demais fornecedores. Pela lei, os créditos quirografários só podem ser liquidados depois que o nó da dívida trabalhista for desatado – se for – no processo de recuperação judicial.

O prazo para isso acontecer é incerto. Pela lei, o Grupo Abril tem dois meses para apresentar um plano para pagar os credores. Se o plano fracassar, a empresa vai à falência.

Nos papéis protocolados na Justiça e obtidos pelo BuzzFeed News, estão misturados nas mesmas colunas de dívida trabalhista tanto valores devidos como rescisão ao pessoal demitido no último dia 6 de agosto quanto créditos de quem continua trabalhando – como férias vencidas ou pagamento de dias de folga e não gozados como compensação por trabalho em fins de semana e feriados, por exemplo.

Os 800 demitidos nem sequer conseguiram sacar o dinheiro em suas contas de FGTS porque o Grupo Abril ainda não havia enviado a autorização para a Caixa Econômica Federal liberar o dinheiro.

Procurada, a assessoria do Grupo Abril informou que a liberação para o saque do FGTS ocorrerá no momento da homologação das demissões, até o dia 31, a partir de quando os ex-funcionários poderão requerer o seguro-desemprego.

Da apostila da demissão ao choque

Rumores de que uma nova onda de demissões ocorreria no grupo editorial começaram a circular ainda em junho, mas o temor do pior só se concretizou quase dois meses mais tarde.

No dia 20 de julho, a consultoria Alvarez & Marsal, especializada em processos de reestruturação de empresas, assumiu o comando das operações da Abril, com a saída de Giancarlo Civita da presidência executiva da Abril. Ele foi substituído por Marcos Haaland, da Alvarez & Marsal.

A Alvarez & Marsal carrega a fama de ter "estômago" para fazer ajustes duros em empresas à beira do abismo, nas palavras de um operador do mercado de capitais.

De acordo com o relato de ex-funcionários ouvidos sob a condição de não terem os nomes revelados, no final de julho, os consultores tiveram reuniões com a cúpula das revistas publicadas pela editora para avisar que era iminente um corte de funcionários e de títulos publicados pela Abril. Conforme estes relatos, a Alvarez & Marsal teria negado que uma recuperação judicial estivesse "na mesa" naquele momento.

A data prevista para o anúncio das demissões era 1º de agosto, uma quarta-feira, mas acabou sendo postergada para o dia 6, uma segunda. Logo pela manhã, os funcionários que chegavam ao prédio do grupo na marginal Pinheiros (zona oeste de SP) eram avisados pelos seus chefes que seus nomes estavam no corte. A orientação era para que fossem imediatamente ao auditório.

No local, cada um que chegava recebia uma senha e era encaminhado para um dos cerca de dez médicos que estavam a postos para o exame demissional. Cumprida a formalidade legal, os demitidos tinham de esperar a vez para serem atendidos pelas funcionárias de recursos humanos. Ali cada pessoa recebeu uma apostila de sete páginas com a explicação dos trâmites da demissão.

Foi neste momento que veio o segundo choque: a rescisão não seria paga de uma só vez como manda a lei, mas em 10 parcelas iguais, sendo a primeira delas dali a dez dias, no dia 15 de agosto.

Tratava-se de uma notícia ruim, mas não desesperadora. Em dezembro de 2017, a Abril havia realizado uma outra onda de demissões e anunciado o pagamento das rescisões em parcelas. A informação é que a empresa vinha conseguindo honrar os pagamentos devidos à turma do corte anterior.

Ainda no dia 15 muitos ex-funcionários começaram a verificar suas contas logo pela manhã. Nada. Alguns passaram o dia dando refresh no site do banco e nada.

Quem ligou para o RH da Abril conta ter ouvido respostas vagas, mas nenhuma explicação. Por volta das 16h, veio o terceiro choque: começaram a pipocar na internet as notícias de que a Abril finalmente ingressara com um pedido de recuperação judicial.

O desespero se instalou nas horas seguintes, quando caiu a ficha de que o dinheiro das rescisões integrava o bolo que a Abril reconheceu publicamente não ter como honrar.

Procurada, a Abril negou categoricamente que a decisão de protocolar o pedido de recuperação judicial no momento de pagar a primeira parcela das rescisões tenha sido uma jogada ensaiada.

"A recuperação judicial não é uma estratégia, mas uma defesa. Não era cogitada anteriormente, porém, uma situação de instabilidade junto aos credores e ações abruptas de restrição de capital de giro levaram o grupo a seguir pelo caminho da proteção judicial", disse nota do grupo enviada ao BuzzFeed News.

Na peça assinada pelos advogados liderados por Eduardo Foz Mange, especialista neste tipo de processo, a Abril alega que o pedido de recuperação judicial se deveu a uma "precipitação" dos bancos, que cortaram as linhas de crédito das quais a empresa dependia para continuar funcionando.

"Para agravar essa situação [impossibilidade de contrair novas dívidas], alguns bancos, na semana passada, procederam, de forma abrupta e precipitada, a retenção de valores que são essenciais para a manutenção das atividades das recuperandas", diz o documento protocolado no dia 15 de agosto.

Traduzindo: o Bradesco, maior credor, foi o primeiro a cortar o cheque especial do conglomerado. Foi seguido pelo Santander e Itaú-Unibanco, conforme apurou o BuzzFeed News.

O pico do Jaraguá e o Everest

No início dos anos 90, a Abril dominava mais da metade do mercado de revistas do Brasil. Naquele tempo pré-internet, a empresa comandada por Roberto Civita (1936-2013), que sucedeu seu pai, tinha as revistas líderes em todos os segmentos. Veja e Exame, fundadas por Roberto, eram os carros-chefes.

A maré começou a mudar quando o conglomerado obteve as concessões para operar TV e fundou a TVA em 1991. A aposta do sucessor de Victor Civita, o primogênito Roberto, era que TV por assinatura era feita sob medida para a Abril por dois fatores: 1) os canais permitiam a segmentação do conteúdo, algo que a empresa tinha expertise por causa das suas revistas; 2) ninguém no Brasil entendia tão bem de vender assinaturas quanto os Civita.

Faltava entender de TV.

Escrita pelo jornalista Carlos Maranhão, a biografia "Roberto Civita – o dono da banca" (Companhia das Letras) registra o erro estratégico cometido pelo grupo não ser capaz de prever a enorme quantidade de capital necessária para fazer o segmento de TV por assinatura no Brasil deslanchar e até atingir uma audiência suficiente para para angariar as almejadas verbas de publicidade.

Um antigo colaborador do grupo usou uma metáfora: "Nos preparamos para escalar o pico do Jaraguá, mas descobrimos que estávamos subindo o Everest".

O endividamento contraído no Everest da TVA, e depois na Directv, está na origem da débâcle de hoje. No início da década passada, a aventura da TV já havia dragado o caixa da Abril e a dívida do grupo já era estimada na casa dos US$ 500 milhões em 2001.

Foi quando a empresa, que sempre se orgulhou de pagar seus funcionários rigorosamente em dia, teve de aderir pela primeira vez ao expediente de pegar dinheiro nos bancos para cobrir a folha de pagamento.

Houve sucessivas tentativas de restruturação. Mais tarde, o conglomerado se desfez de suas posições em TV e até vendeu seu lucrativo braço educacional, a Abril Educação, para sobreviver. Mas nunca se livrou da ameaça do endividamento.

"A Abril fez muita emissão, inclusive fora [do Brasil], ainda na época da TVA. Dívidas que foram feitas depois eram até de longo prazo. O problema do futuro é que um dia ele vira presente", disse um analista do mercado de capitais ao BuzzFeed News.

O futuro açoitou a companhia. Desde 2014 e 2017, o faturamento foi dizimado em um terço. No balanço publicado em março, a Abril e suas controladas fecharam 2017 com R$ 368 milhões no vermelho. Em 2016, o prejuízo já havia sido quase idêntico, R$ 367 milhões. Segundo o balanço, o patrimônio líquido do grupo fechou negativo em R$ 715 milhões.

Na ocasião, os auditores da PriceWaterhouseCoopers afirmaram que havia "incerteza relevante relacionada com a continuidade operacional" do grupo. Uma nota de ironia: os próprios auditores têm R$ 1 milhão no espeto da recuperação judicial.

"O crescimento com imprevisível rapidez da mídia digital afetou gravemente as receitas das empresas focadas em publicações impressas. De fato, as grandes editoras foram obrigadas a manter a produção de conteúdo, com elevados custos, e perderam grande parte da sua principal fonte de receita representada pela publicidade. Os gigantes Google, Facebook e 'blogs', estes com custos ínfimos, passaram a oferecer aos anunciantes publicidade a preços muito baixos", conforme a explicação esboçada que está no pedido de recuperação judicial, protocolada no dia 15.

Sangue na água

O processo de recuperação judicial abriu especulações sobre o que acontecerá com a Abril. Além de marcas líderes no segmento de revistas e serviços gráficos, a companhia ainda tem ativos valiosos no segmento de logística e distribuição.

A Dilogpar, uma das empresas de distribuição, entrega publicações em mais de 15 mil pontos do país, como bancas, supermercados e lojas de conveniência. A Tex Courier, adquirida em 2011, é uma empresa de armazenagem e transporte de encomendas especializada em e-commerce. É uma das jóias da coroa do grupo porque está presente em 2.800 municípios e tem 600 rotas semanais de avião, capaz de entregar 750 milhões por ano.

Um dos rumores que correu na última semana é que parte das dívidas em favor dos bancos poderia estar em vias de ser vendida no mercado secundário a algum fundo-abutre, como são conhecidos os investidores que compram por uma fração ínfima do valor de face papéis podres.

Embora seja operação de risco alto, é também a oportunidade de assumir ativos que podem ser revendidos, com lucros altíssimos, a interessados em assumir no todo ou parte das operações do grupo. Para os bancos, é uma oportunidade de limpar de sua contabilidade créditos de difícil recuperação. Procurada, a Abril negou que tenha havido qualquer venda da dívida no mercado secundário.

Num dos trechos do livro de Carlos Maranhão, o banqueiro Pedro Moreira Salles falou sobre o que seria a maior preocupação de seu amigo Roberto Civita:

"Roberto tinha uma enorme angústia em relação ao que aconteceria com a empresa e qual seria o seu legado. Inúmeras vezes falou sobre isso comigo. Para ele, era importantíssima a preservação da Abril como uma instituição que defendia certos princípios nos quais tanto acreditava. Gostava de ser o dono da editora e, sobretudo dono da Veja, que foi sua filha, mas o aspecto patrimonialista para ele não era relevante."

Cinco anos após a morte do criador de Veja e Exame, a sobrevivência da Abril (ou o seu epílogo) depende do que vai acontecer no 18º andar do fórum João Mendes, no centro de São Paulo.

É onde fica a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais.

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