Como é ser estuprada pelo seu próprio parceiro

"Se alguém falasse alguma coisa sobre as marcas nos meus braços ou em volta do meu pescoço, eu dava os ombros e dizia que não sabia. Me surpreende muito a facilidade com a qual as pessoas aceitam uma resposta besta dessas." AVISO: este artigo contém descrições gráficas de abuso sexual e estupro.

A ideia de que o estuprador sempre é um estranho que aborda suas vítimas em locais públicos de forma aleatória não condiz com os dados que existem sobre este tipo de criminoso.

Ipea / Via ipea.gov.br

Boa parte dos casos de estupros são cometidos por parceiros, ex-parceiros, familiares e conhecidos das vítimas, como mostram dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação).

De acordo com a nota técnica do Ipea “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, de 2014, estima-se que a cada ano ocorram 527 mil tentativas ou casos de estupros no país, dos quais apenas 10% são levados à polícia.

Os dados condizem com a situação de outros lugares. Na Austrália, por exemplo, em 71% dos abusos ocorridos contra mulheres, o agressor era alguém conhecido, segundo dados mais recentes de cinco Estados e territórios da Agência Australiana de Estatística.

Abaixo, as histórias de cinco australianas que sofreram violência sexual nas mãos dos seus parceiros.

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Estelle havia se conformado de que ser tocada contra a própria vontade era "parte natural" de um relacionamento com um homem.

"Meus peitos e minha bunda não eram meus", contou ao BuzzFeed News. O nome de Estelle e de todas as outras pessoas neste artigo foram mudados para proteger suas identidades.

No relacionamento de três anos que manteve com seu ex-namorado Adam, ela disse que um consentimento verdadeiro era "quase que totalmente ausente".

"Aprendi que, se eu não fosse capaz de satisfazer meu parceiro em todas as suas necessidades sexuais, eu ia perdê-lo para outra pessoa que fosse."

"Tinha medo de que, se eu passasse duas ou três noites seguidas sem satisfazê-lo, ele iria me deixar." Quando ela estava cozinhando, estudando ou lavando a louça, Adam chegava por trás e a "encoxava violentamente".

"Eu me sentia completamente impotente." Ela concordava em participar de relações sexuais que a deixavam "profundamente desconfortável" porque ela tinha medo de dizer "não".

"Eu geralmente acordava no meio da noite – geralmente noites em que eu havia recusado sexo – e via ele em cima de mim, enfiando os dedos e, às vezes, tentando me penetrar à força. Não havia consentimento... Às vezes ele parava, às vezes não."

A primeira vez que Estelle viu Adam em cima dela, ela resolveu brigar. Dizendo "não" repetidamente, pediu para que ele parasse e o empurrou para longe. Ao resistir, ela foi chamada de "frígida", o que impactou negativamente o relacionamento deles e "causou problemas".

Mais tarde, quando ela se negou a fazer sexo novamente, Adam bateu nela. "Eu entreguei meu corpo para o meu parceiro e, se eu ousasse recuperar minha autonomia, ele ia me agredir, me assediar, me estuprar e eu seria a culpada por estragar nosso relacionamento, afinal, 'um homem tem necessidades'."

"Quando as mulheres se comprometem com um relacionamento, é comum a anulação do consentimento. Isso me assusta muito."

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Rebecca Hendin / BuzzFeed

Carmen se apaixonou pelo seu colega de trabalho, Mitchell, que era uma pessoa "engraçada, amigável e sorridente".

Eles namoraram por um ano. Mitchell com o tempo passou a assediar Carmen verbal, física e sexualmente, mas tinha um arsenal de desculpas para justificar seus abusos. "Eu tinha medo da pessoa que deveria ser a minha maior protetora."

"Ele chorava e dizia que não se sentia amado, que não estávamos fazendo sexo com a frequência que ele gostaria." Às vezes, era porque ele via um homem me secando e eu precisava ser lembrada de que eu pertencia a ele. Às vezes, era porque eu passava tempo demais conversando com um amigo.

A tristeza dele logo se transformava em agressão.

"A coisa toda mudava em questão de minutos, de lágrimas a ele em cima de mim, abrindo minhas pernas, com as mãos no meu pescoço e forçando a penetração", diz Carmen.

Ela se convenceu de que o tinha decepcionado, que ela merecia passar por isso e que "precisava reconhecer mais as necessidades dele".

"Em seguida, ele sempre pedia desculpas pelas marcas que havia deixado."

Mitchell disse para Carmen que ela deveria ficar lisonjeada por ele não conseguir resistir a ela, que era "impossível não comê-la".

Ele tentava reformular esses incidentes violentos como "sexo selvagem".

Carmen carregou o peso do abuso sozinha, porque achou que as pessoas não acreditariam que ela tinha tentado resistir ou que não tinha conseguido ir à polícia.

"Se alguém falasse algo sobre as marcas nos meus braços ou em volta do meu pescoço, eu dava os ombros e dizia que não sabia. Me surpreende muito a facilidade com a qual as pessoas aceitam uma resposta besta dessas", disse.

Toda vez que tentava terminar, ela sentia que as ameaças de suicídio dele avançavam para uma "realidade iminente".

"Chegou em um ponto em que eu realmente acreditava que o relacionamento não poderia acabar sem que ele morresse, e que a única diferença seria o momento em que eu terminaria. E não era horrível, sei lá, pensar que eu merecia a vida mais do que ele?"

A culpa permaneceu com ela por um bom tempo após o término.

"Precisei de muito tempo para entender que eu fiz o que era certo para mim e não era obrigação minha consertar a vida dele."

Ela se sente otimista com o fato de ser capaz de reconhecer comportamentos abusivos e controladores nos estágios iniciais de um relacionamento, mas ainda sofre com "enormes mudanças de humor".

"Às vezes, ainda tenho acessos de raiva. Fico com raiva dele, de mim mesma e do fato de ter perdido minha identidade naquele ano que passei morrendo de medo. Tem dias que eu fico deitada, sem energia para fazer nada e penso que nem adianta fazer algo, porque as pessoas serão cruéis de qualquer jeito. Às vezes, eu apenas choro."

Carmen ainda tem que ver Mitchell porque eles trabalham juntos, mas está ficando mais fácil de lidar. "Ainda estou lutando, mas não estou destruída."

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Rebecca Hendin / BuzzFeed

Jasmine foi uma "criança superprotegida", educada em casa por seus pais, que eram muito religiosos, durante quase toda a vida.

Ela passou por uma fase rebelde aos 18 anos, época durante a qual foi perseguida por Victor, de 33, que participava com ela de um teatro comunitário.

"Eu nem lembro dele ter me chamado para sair, só sei que, de repente, já estávamos juntos", contou ao BuzzFeed News. "Nós conversávamos muito sobre a questão da minha virgindade e eu deixei claro que, quando estivesse pronta, eu falaria para ele."

Essas conversas sempre terminavam com ele "prometendo que iria esperar".

"Uma vez, ele estava dando uma festa na casa dele e muita gente dormiu lá, então não tinha outro lugar para eu dormir a não ser na cama dele. Eu estava bem bêbada e com sono, então deitei toda vestida mesmo e desmaiei."

"Quando acordei, ele já estava me penetrando. Foi a dor que me acordou, na verdade."

Jasmine disse que "congelou" na hora e "ficou parada até acabar".

"Depois, ele me abraçou e eu chorei. Ele disse que todas as meninas choram depois de perder a virgindade." Ela tomou uma pílula do dia seguinte e ficou morrendo de medo que seus pais descobrissem.

"Eu lembro de lavar o sangue na minha calcinha e de mentir para minha mãe quando ela viu. Eu disse apenas que minha menstruação tinha vindo antes naquele mês. O dia todo foi uma humilhação atrás da outra.

"Eu fui criada para acreditar que, se um homem se sentisse provocado por mim, era meio que culpa minha. Era a forma como meus pais entendiam a religião deles e como me ensinaram... Eu acho que foi por isso que eu nunca denunciei. Na verdade, nunca contei para ninguém."

O relacionamento durou mais sete meses.

Somente anos depois, quando Jasmine estava em uma festa e as outras meninas estavam contando como perderam a virgindade, que ela percebeu que a história dela "não era normal".

"O que me deixou surpresa com a história delas foi o poder e o controle que elas tiveram... Eu fiquei tipo: 'Nossa, você teve escolha?'. Então eu percebi que o que havia acontecido comigo não era normal."

Durante seus 20 e poucos anos, Jasmine disse que sexo para ela era uma "experiência fora do corpo", na qual "coração e mente ficavam em outro lugar".

"Eu não conseguia adormecer nos braços de alguém – o peso de um braço ou perna no meu corpo conforme eu adormecia me deixava em pânico, e eu lembrava de novo do momento em que acordei com meu ex me estuprando."

Agora, ela está em um relacionamento duradouro com um rapaz "gentil e compreensivo". "Eu estou começando a conseguir dormir abraçada com o meu parceiro. Demorou, mas tenho orgulho de ter sobrevivido."

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Rebecca Hendin / BuzzFeed

Lara ficou casada por dez anos com o pai de seu filho. Antes de se separarem, segundo ela, eles tinham um "relacionamento normal, carinhoso e acolhedor."

"Depois que nos separamos, uma onda de rancor começou a surgir, por mais que tentássemos ter uma relação amigável."

Ela havia começado em um emprego novo e não estava conseguindo lidar com isso.

No terceiro dia, ela teve um ataque de pânico e ligou para o ex-marido atrás de conselhos. "Ele veio me ver e eu bebi meia garrafa de uísque sozinha. Em questão de horas, eu estava bem bêbada."

Lara disse que, quando foi deitar, ele foi atrás dela. "Eu tinha 35 anos e já estávamos separados há cinco quando ele me estuprou."

A coisa que ela se lembra é de ter força apenas para virar o rosto para que ele não pudesse beijá-la. "Eu acho que eu disse 'não', mas eu estava muito bêbada. Eu não conseguia me mexer e acho que estava bem claro que eu não queria sexo. Depois, ele se vestiu e foi embora."

O incidente, na cabeça de Lara, não fazia sentido, porque o ex-marido já havia ajudado ela a superar um abuso anterior.

Dizer que o estupro foi uma surpresa é eufemismo. Forçar sexo quando eu era física e psicologicamente incapaz de consentir, me estuprar quando eu estava na pior, é repugnante."

Quando Lara o viu novamente, ela sentiu um "medo silencioso" de que ele a estupraria novamente.

"Eu fiquei literalmente sentada de pernas cruzadas e com os braços também cruzados sobre o meu colo a noite toda. Meu corpo estava tentando me defender, porque meu cérebro ainda não havia conseguido reagir."

Hoje em dia, ela tenta evitá-lo. "Eu sou educada, mas só por causa do meu filho."

Bree tinha 15 anos quando começou a sair com Alex, um homem trans que se identificava como mulher na época em que estavam juntos.

"Meus amigos me evitavam por causa desse relacionamento. Nós estudávamos em uma escola católica. Havia muita homofobia internalizada", diz Bree, agora com 21 anos.

"Foi meu primeiro relacionamento de verdade, então, levou um tempo para eu perceber o quando ele era prejudicial."

Um dia, depois da escola, Alex disse para Bree que ele queria amarrá-la e vendá-la. "Eu me senti desconfortável logo de cara, mas acabei cedendo", disse.

"Então, nos momentos iniciais da relação sexual, eu disse 'não' e que não queria mais fazer aquilo, porque não estava me sentido confortável. Nesse momento, ele colocou o braço sobre o meu abdômen para que eu não reagisse e a coisa toda se tornou mais violenta."

"Eu parei de falar 'não' e não podia fazer muito barulho, porque meus pais estavam em casa."

Depois, Bree tentou conversar com Alex a respeito. "Ele disse que achou que eu estava dizendo 'não' porque assim ele ficaria mais excitado, porque fazia parte do momento, embora a gente nunca tivesse feito isso antes... Então, a culpa recaiu sobre mim, porque eu não deixei claro que não queria."

Ele trouxe flores para ela e disse que "se sentiu péssimo", embora sem especificar o porquê. "Eu ficava tentando voltar ao assunto, até que ele finalmente disse: "Você pode chamar a polícia e mandar me prender ou a gente pode não falar mais sobre isso."

Eles terminaram três meses depois. "É difícil fazer sexo agora sem pensar sobre aquele momento", disse.

"De certa forma, a transição de Alex facilitou para o meu lado, porque as pessoas são mais propensas a acreditar em um estupro quando ele é feito por um homem. Mas quando estávamos juntos, ele ainda se identificava como mulher."

Se você ou alguém que você conhece está sofrendo algum tipo de abuso e precisa de ajuda ou apoio, a Central de Atendimento à Mulher funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. Ligue para 180.

Este post foi traduzido do inglês.

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