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A caçada atrás do fake que usava fotos minhas em um aplicativo de sexo

Ele passa um endereço em Higienópolis e marcamos dali a 40 minutos. Em casa, a faxineira me aconselha: "Vai com a camiseta que você está na foto que ele usa de perfil. Imagina o quanto isso vai ser louco".

Lá estava eu, na tela do celular, em uma das minhas fotos preferidas: forçando o muque direito enquanto olhava para a câmera com um olho fechado, imitando a pose do marinheiro Popeye. Só que não era eu que estava por trás do perfil na tela. A foto estava sendo usada num aplicativo de sexo gay por outra pessoa, que estava online naquele fim de tarde de quinta-feira de fevereiro.

“Alerta! Estão usando seu rostinho no Grindr”, tinha me avisado um amigo, o escritor Gael Rodrigues, duas horas antes. E estavam mesmo. Não só o rostinho, por sinal. Alguém no centro de São Paulo tinha feito um perfil com uma dúzia de fotos minhas há pelo menos dois dias.

Assim que recebo a mensagem de WhatsApp, baixo o aplicativo, que mostra os 40 e poucos perfis mais próximos. Estão lá o Ksado Com Local, que usa a foto de um pitbull, e o Chupador Rola, cuja foto mostra o contraluz de um homem por trás da bandeira do Brasil. Mas não vejo ninguém que se parecesse comigo.

À noite, andando por Santa Cecília, saco de novo o celular e clico no app, cujo logo lembra uma caveirinha preta num fundo laranja. E lá está ele. A 300 metros de mim, que ainda não tenho apelido nem foto de perfil, na oitava casinha do mosaico de perfis.

As informações do perfil são mais ou menos verdadeiras, constato enquanto caminho para encontrar um grupo de amigos. Eu tenho 31 anos, e ele tem 34. Eu tenho 1,87 m e meu irmão perdido marcava 1,83 m de altura. Ele mora no mesmo bairro que eu, mas a alguns quarteirões de distância.

Clico na estrelinha no canto da tela para favoritar o perfil do fake. Assim, posso vê-lo mesmo que esteja fora do meu alcance.

O fake vira o assunto do jantar. Resolvo, com o apoio do homem que eu amo e dos meus dois melhores amigos, que iria usar a mesma tática para fisgar quem estivesse fazendo isso. “Quem com fake fere com fake será ferido”, diz a Heloísa, uma amiga maquiadora. Todos riem.

Acordo ansioso no dia seguinte. Abro o app às 8h. Nada da bolinha verde que sinaliza que a outra pessoa está online. Às 9h, checo de novo. Nada. Finalmente, às 10h30, meu fake acorda. Decido que, antes de tentar contato, quero estar o mais próximo possível dele. Vai que ele quer marcar um encontro.

Como se estivesse caçando um Pokémon que se parece muito comigo, saio zanzando pelas ruas do centro com os olhos fixos na tela, quase sendo atropelado quando cruzo a avenida São Luís. Vou andando na tentativa e erro. Uns passos para a direita e, como num jogo de cabra-cega, estou mais quente. Se viro à esquerda, estou mais frio.

A caça ao tesouro me leva a um café na praça da República. Ele está a 14 metros de mim. Olho ao redor, desconfiando que qualquer pessoa possa ser o fake. Há uma criança com um tablet, enquanto seu pai está na fila para fazer o pedido. Nem ela escapa à paranóia. Mas é inútil conjecturar, então ponho os dedos à obra: vou dar rosto ao meu perfil fake.

QUEM COM FAKE FERE…

Com alguma culpa, estampo o perfil fake com a imagem de um homem que nunca conheci. O irmão de uma amiga turca. Um moreno alto, barba cerrada e preta, esguio sem ser musculoso. Um tipo que, acho, chamaria a minha atenção.

Mando um: “eae”, porque o personagem que eu criei na minha cabeça em meio minuto falava que nem um gay que quer falar que nem um hétero. Trinta segundos depois, o fake com minha foto não aparece mais no menu de homens ao meu redor. O fake que criei como isca não havia agradado, e tinha sido bloqueado pelo meu fake, que chegava ao seu terceiro dia de vida.

Deleto o aplicativo e abro uma conta nova (para isso, basta colocar um endereço de e-mail, que pode ser fictício, e criar uma senha). Na segunda tentativa, me fantasio com a foto de um modelo finlandês — usando a imagem dele indevidamente, como o fake tinha feito comigo. Também me armo com fotos de corpo, caso o eu fake fosse com sede ao pote. Eu não poderia correr o risco de perdê-lo por lerdear, ou por ter nudes que não ornassem com a foto de rosto fictícia.

Bancos de imagem como o Getty Images têm um vasto cardápio de fotos de traseiros. É possível escolher pela idade, etnia ou posição. Baixo de graça uma foto de raba que parecia combinar com o tom de pele do modelo e mando bala.

“Olá”

E mando junto uma foto em que o modelo está no sol, sem camisa.

Um minuto depois a resposta dele pipoca em azul na tela.

“Tudo bem?”

Em seguida ele envia uma foto minha em que estou de cueca na cama de um hotel.

Já respondo com a foto da bunda do banco de imagens, e aviso que sou novo na vizinhança. “Não venho nunca, estou aqui só para uma reunião”, escrevo, tentando aumentar o valor de mercado do meu fake e deixar claro que era agora ou nunca. “Qual é seu nome?”, pergunto.

“Chico, e você?”. Ele estava usando meu nome de verdade. Me batizo instantaneamente de Paulo e engato uma conversa que transformaria essa reportagem num conto erótico de qualidade indubitavelmente ruim. Ele salpica a conversa com cinco nudes meus. Até que, no meio da sacanagem, ele escreve: “Vem aqui”. Bingo.

Ele passa um endereço na rua Albuquerque Lins, em Higienópolis, e marcamos para meio-dia, dali a 40 minutos. Corro de volta para casa, porque meu celular estava com 1% de bateria.

A faxineira, que conheço há cinco anos e está limpando o quarto quando chego, me aconselha: “Vai com a camiseta que você está na foto que ele usa de perfil. Imagina o quanto isso vai ser louco”. Coloquei a regata listrada em branco e azul-marinho e saí com o coração palpitando. Eu não sabia o que esperar. Só sabia o que não esperar: um irmão gêmeo idêntico que tinha tirado as exatas mesmas fotos que eu.

Chego na frente do prédio e peço para ir no apartamento 52, sem dizer que era o do Chico, porque Chico era eu. O porteiro diz: “Não tem 52 aqui. É um por andar.” O fake tinha mentido. Eu deveria ter desconfiado. Na praça da República, ele estava a 14 metros de mim. O apartamento em Higienópolis era a dois quilômetros dali. O ânimo de achar que eu tinha fisgado o fake tinha embaçado meu discernimento.

Ainda na calçada, abro o aplicativo para tentar perguntar ao fake o que tinha acontecido. Mas, em vez do cardápio de homens a fim, aparece uma tela avisando que minha conta havia sido suspensa. Alguém havia denunciado meu perfil como conteúdo inapropriado. Eu não havia conversado com ninguém além do fake.

UM FAKE DESTRÓI VIDAS

Escrevo para o escritório do Grindr, nos EUA, contando que estava fazendo uma reportagem sobre a busca por um fake que usava minhas fotos. Mando três vezes por e-mail as seguintes perguntas:

1- Há uma pessoa usando fotos minhas no seu aplicativo. Ele me denunciou e tive meu perfil bloqueado. Que medidas vocês tomam para evitar que esse tipo de fraude aconteça?

2 - Quais as punições para alguém que usa indevidamente a foto de uma pessoa?

3 - Quais são seus conselhos para quem teve fotos usadas por outras pessoas no aplicativo?

As mensagens nunca foram respondidas.

Minha história está longe de ser a única, ou a pior. O americano Matthew Herrick afirma que 1.100 homens apareceram no seu trabalho ou na sua casa, ao longo de oito meses, para encontros sexuais que ele não havia marcado. Um fake usava fotos suas e passava os endereços, ele afirma no processo que move contra o Grindr. O gatuno, que ele desconfia ser um ex-namorado, já avisava os dates que ia agir como se não tivesse chamado para ir lá, porque tinha o fetiche de encenar estupro. Herrick perdeu o emprego e diz que teve de começar a tomar remédio para ansiedade.

Herrick diz que denunciou o fake mais de 100 vezes para o aplicativo, que tirava o perfil do ar para em poucas horas pipocar outro idêntico. A ação está numa corte federal americana desde fevereiro de 2017.

"EU SEI QUEM É"

Dias depois, decido fazer piada da situação. Posto no Instagram um printscreen do perfil falso e escrevo a legenda: “1 sonho realizado: ter 1 fake no grindr”. Recebo nas horas seguintes 27 respostas. Um jornalista com quem não falo há uns oito anos escreve: “Bem relacionado esse fake, viu?”, e depois me conta que o impostor havia proposto de se encontrar com ele e seu namorado.

Horas depois de publicar a foto, o amigo de um amigo me escreve no inbox. Diz que sabe quem é a pessoa por trás do perfil de fachada. “É um designer que vive de fazer isso, mora pertinho da sua casa. Eu te mato se você disser que eu contei.”

Digo que quero conversar pessoalmente, porque estou escrevendo sobre essa busca. A gente marca de se encontrar no dia seguinte, no mesmo café onde eu semanas atrás tinha ficado a poucos passos do fake.

O semi-conhecido chega dando risada. “É engraçado isso, né?”. Talvez ele ache engraçado por já ter feito a mesma coisa com várias pessoas. “É por isso que eu sei que esse cara clona os outros, a gente ficava se contando.” Mais do que colecionar nudes, ele definiu a tara de imitar uma pessoa em redes sociais como ser um acumulador de informação íntima. “Você fica sabendo o que cada um gosta de fazer na cama", diz. "Ou na escada do shopping Frei Caneca”, acrescenta, e ri por dois segundos, antes de ficar sério de novo. Diz que a consciência pesou e ele parou com isso depois de uns meses. O tal amigo, não.

O delator narra como é fácil “clonar” um perfil (é ele que escolhe o verbo). Há muitas fotos públicas suas por aí. A que meu clonador escolheu para usar no perfil fez parte do Pauta Quente, um perfil de Instagram feito por dois amigos da Folha de S.Paulo que elege os homens menos intragáveis do jornalismo brasileiro. Há uma premiação anual, na festa de fim de ano da Folha, empresa onde já trabalhei e para a qual ainda colaboro de vez em quando.

Obter as fotos íntimas devem ter dado mais trabalho. Mas nem tanto. Eu mando nudes. Para pessoas específicas. Mas nada impede que elas mandem para outras pessoas específicas, que mandem para outras pessoas menos específicas até que tenham caído em um falso domínio público.

Antes de a gente terminar os cafés de meio litro, o amigo do amigo me passa o endereço do suspeito. Um prédio de 28 andares de quitinetes atrás da praça Roosevelt. Quando estou na porta do prédio, o marcador mostra que meu fake está a 0 metros. Pode ser só coincidência, é claro. Pode ser outra pessoa. Mas pode não ser coincidência.

É quarta-feira. O delator diz que na sexta vai sair com uma turma, e que o fazedor de fakes deve ir junto. Na sexta de manhã, ele me manda um inbox dizendo: “Pitico hoje à noite. Às nove. Não fode”.

Vou até uma rua que cruza o largo da Batata, a mais de cinco quilômetros do prédio onde o fake esteve a 0 metros. Quando abro o aplicativo, lá está ele, a primeira opção. O mais próximo. A 12 metros. Olho para a mesa e identifico o suspeito. Olho para ele, dedilhando o celular, que joga uma luz fria no seu rosto, e olho para mim na tela do meu celular.

Espero 15 minutos em pé contra a parede do bar, um quintal com mesas de piquenique e luzes de natal penduradas, com um copo de cerveja esquentando na mão. Não cumprimento o amigo que caguetou, para não levantar suspeita. Quando o suspeito se levanta para ir ao banheiro, eu vou atrás. Espero do lado de fora da porta, enquanto uma vontade súbita e galopante de ir ao banheiro me faz perceber o quanto estou nervoso.

Ele abre a porta e dá de cara comigo. É como se eu tivesse encontrado uma celebridade na rua. Não uma celebridade inalcançável, tipo a Beyoncé, mas uma celebridade de porte médio. Digamos, uma Wanessa Camargo. Será que ele está sentindo a mesma coisa?

Me coloco na frente dele e tento disfarçar o máximo o possível o nervosismo da voz, parecer calmo e seguro. Mando a fala que já tinha ensaiado mentalmente: “Tá tudo bem. Eu sei que você fez um perfil com a minha foto. Eu não vou brigar com você. Eu só quero conversar”. Ele me olha fundo e diz, colocando a mão no ombro para que eu saia do caminho: “Amigo, você tá falando com a pessoa errada”.

Penso em segurá-lo e pedir para abrir o celular, mostrar o aplicativo, já que quem não deve não teme. Antes de percorrer a distância entre a intenção e o gesto, desisto. Ele passa por mim em direção à mesa. Eu nunca vou conseguir provar que esse é o celular por trás do meu fake. Ou qualquer outro celular. Volto pra casa. Quatro dias depois, o fake some. A vida volta ao normal.

Duas semanas depois, recebo uma imagem no Instagram. É de um perfil de Scruff, outro aplicativo de encontro para gays, só que para homens peludos e mais rústicos. Ele também tem uma foto minha, e o apelido “Write me man!”, ou “Escreve pra mim, cara!”.

Ao contrário do meu primeiro fake, este não está ao alcance dos pés. Marca 9.135 km de distância. E é mais jovem que eu: tem 27 anos. Mais baixo: tem 1,81 m. Mais pesado: 85 kg. A descrição está em inglês. No campo O Que Eu Procuro, ele escreve, em inglês: “Encontrar um cara e alguém que ajude meu irmãozinho com o dever de casa”. Rio enquanto fecho o aplicativo e abro outro, para pedir jantar e comer com o homem que eu amo.

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