Hipocrisia feminista é a nova tendência nas narrativas das start-ups

Miki Agrawal, fundadora da Thinx, é apenas o exemplo mais recente de uma série de fundadoras e CEOs, de Sophia Amoruso a Arianna Huffington, que não colocam em prática o empoderamento feminino que pregam.

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A partir da esquerda: Miki Agrawal, Sophia Amoruso e Arianna Huffington

Desde sua fundação, em 2015, a start-up nova-iorquina Thinx se posiciona como uma empresa provocadora. Seus anúncios de calcinhas que dispensam o uso de absorventes quando as mulheres estão menstruadas foram rejeitados pelo metrô de São Francisco porque continham a palavra “buceta” e só apareceram no metrô de Nova York depois de alguma briga. Enquanto isso, a fundadora da empresa, Miki Agrawal, de 38 anos, saboreou seu autodenominado papel de agitadora feminista sem papas na língua, fazendo sua parte para normalizar não só a conversa a respeito da menstruação, mas também do corpo feminino.

Uma causa nobre, com certeza, mas que parece ter se chocado de frente com as realidades de administrar um negócio. Uma série de artigos em sites como Jezebel e Racked e, o mais duro deles, na revista New York, detalharam como a Thinx não praticava o que pregava: o plano de saúde da empresa era caro; até recentemente não havia política de licença-maternidade; e os funcionários que se queixavam eram ignorados ou até mesmo demitidos.

Agrawal – que desde 2005 também é dona da pequena rede de pizzarias sem glúten Wild nos EUA – era pessoalmente responsável, sugerem os artigos, pelo bullying contra os funcionários e por criar um ambiente de trabalho hostil, trocando de roupa na frente da equipe, fazendo reuniões pelo FaceTime enquanto usava o banheiro e fazendo comentários sobre o corpo dos seus empregados. Uma das acusações mais perturbadoras é que ela assediou sexualmente a ex-responsável pela área de relações públicas da empresa, Chelsea Leibow, que apresentou uma denúncia formal junto à Comissão de Direitos Humanos de Nova York.

Como escreveu Noreen Malone na New York: “Leibow disse que não achou que sua chefe estava dando em cima dela, mas explicou seu desconforto da seguinte maneira: ‘Achei que Miki objetificava meu corpo quando dizia que era ‘obcecada’ por ele e fazia comentários detalhados sobre meus seios, e também parecia uma maneira de Miki afirmar sua dominação sobre as funcionárias mulheres, simplesmente fazendo o que quisesse e deixando claro que ela conseguiria se safar disso.”

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É possível se comprometer ao mesmo tempo com o feminismo e o capitalismo?

No entanto, Agrawal é apenas mais uma de uma série de fundadoras de empresas e CEOs, de Sophia Amoruso (fundadora do Nasty Gal) a Arianna Huffington e Ivanka Trump, cujas práticas não correspondem inteiramente à narrativa de empoderamento que elas defendem publicamente. E todas essas histórias levantam a questão: é possível se comprometer ao mesmo tempo com o feminismo e o capitalismo? E por que ainda ficamos tão surpresas quando essas mulheres – que construíram marcas dizendo as coisas que queremos ouvir – acabam demonstrando os mesmos defeitos de seus pares homens?

A desconexão entre marca e realidade pode ser particularmente dolorosa para os funcionários, muitos dos quais jovens que aceitaram esses empregos porque
queriam trabalhar em uma empresa cujos ideais pareciam alinhados aos seus.
(Uma funcionária da Thinx me disse que Agrawal constantemente recebia mensagens
de garotas que queriam trabalhar com ela.) As condições de trabalho em start-ups como essa são perfeitas para a exploração de jovens mulheres, que costumam ter pouca ou nenhuma experiência. Se você não sabe o que é um ambiente de trabalho normal, como é que vai saber quando alguma coisa está errada? É possível imaginar fundadores de start-ups preferindo funcionários jovens e sem experiência, em parte porque eles custam pouco, mas também porque eles são menos propensos a contestar a chefia.

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Charley Gallay / Getty Images

O livro "#Girlboss", de Sophia Amoruso.

Sophia Amoruso, fundadora da loja on-line Nasty Gal, já foi considerada a próxima grande sensação da moda. Em 2014, ela publicou "#GirlBoss", um misto de memórias e autoajuda no qual usava a experiência da Nasty Gal para
aconselhar uma nova geração de empreendedoras e administradoras a se empoderarem.

Desde então, ela se reinventou como uma espécie de Arianna Huffington punk-rock para o pessoal de 20 e poucos anos. Ela criou uma fundação que recentemente
fez seu primeiro "comício" com 500 mulheres (mais aquelas que compraram um “ingresso digital” de 65
dólares que, entre outras coisas, garantia participação no grupo privado do Facebook Girlboss Gang) e acaba de lançar uma série na Netflix. Desde 2015, o dia-a-dia do negócio está sob responsabilidade de Sheree Watson.

No entanto, segundo ex-funcionárias da Nasty Gal, Amoruso nunca pôs em prática o feminismo empoderador que prega. Um processo de 2015 afirma que três funcionárias foram demitidas logo antes ou durante sua licença-maternidade: “A Nasty Gal demonstrou ser um lugar horrível de trabalho para profissionais que ficam grávidas”, diz o processo. Mais ou menos na mesma época, outros funcionários descreveram Amoruso como mesquinha e vingativa, cercada por uma equipe de mulheres que “só dizem sim”, sempre em detrimento do restante da empresa.

Como disse uma funcionária para o Jezebel, em junho de 2015: “Quero que as jovens que estão procurando emprego na Nasty Gal conheçam a verdade sobre a empresa. Vi muita
gente dedicada e ambiciosa perder a autoconfiança e a motivação, incluindo eu mesma. Não desejo isso para ninguém”. Depois de angariar 65 milhões de dólares de investidores de risco entre 2012 e 2015, a Nasty Gal declarou falência em 2016 (e Amoruso saiu da lista das “Self-Made Women Mais Ricas dos Estados Unidos”). Hoje em dia, ela parece dedicar a maior parte de seu tempo à Fundação Girlboss.

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Como empregadoras, Agrawal e Amoruso conseguiram capitalizar o lado cool das marcas de suas empresas.

Como empregadoras, Agrawal e Amoruso conseguiram capitalizar o lado cool das marcas de suas empresas. A Thinx conseguia atrair funcionárias que usavam seus produtos ou que simplesmente tinham gostado dos anúncios do metrô. A Nasty Gal cultivava sua imagem basicamente via redes sociais e um marketing que era capaz de atrair funcionárias que compartilhavam da missão da companhia – pessoas que acreditavam no que a seção “Sobre a Nasty Gal” chamava de “meninas na moda e que olham pra frente” (mas que agora é “meninas que têm a confiança de serem elas mesmas”).

Tanto Amoruso como Agrawal publicaram livros em que delineiam suas filosofias – "#Girlboss", de Amoruso, e "Do Cool Shit", de Agrawal, um manifesto
que promete ensinar as pessoas a “largar o emprego, começar seu próprio negócio
e viver uma vida recompensadora” – e que na prática também servem como anúncios
de oferta de emprego.

O predecessor moderno de "#Girlboss", claro, é "Faça Acontecer", de Sheryl Sandberg, cujo objetivo era ajudar as mulheres a avançar no mundo profissional afirmando que elas têm de pedir o que querem – efetivamente colocando a culpa de eventuais diferenças de gênero no mundo corporativo nas próprias mulheres, não em instituições sexistas. (Sandberg foi criticada recentemente por não se pronunciar sobre a Marcha das Mulheres nos EUA e depois disse estar arrependida).

Se você constrói sua marca em torno do feminismo consumidor, e parte desse feminismo consumidor é “ensinar” outras mulheres, você se coloca numa situação ainda mais precária se não alcançar os ideais que definiu para si mesma e para suas potenciais seguidoras.

Considere Arianna Huffington, que declarou que “o sono é uma questão feminista”, mas supostamente teria dado para outra pessoa o emprego de Sarah Lacy no site TechCrunch quando Lacy estava dando à luz. Estamos falando de uma mulher cujo livro de 2014, "A Terceira Medida do Sucesso", prometia ensinar as pessoas como usar uma terceira métrica para definir o sucesso – uma medida que “inclui nosso bem-estar, nossa capacidade de confiar em nossa intuição e sabedoria interior, nosso senso de deslumbramento e nossa capacidade de sentir compaixão e de doar”.

Desde então, Huffington assumiu uma posição mais mão-na-massa como integrante do
conselho de administração da Uber. Ela apareceu ao lado do fundador da companhia, Travis Kalanick, na primeira reunião geral de funcionários depois das denúncias de práticas sexistas na empresa por parte da ex-funcionária Susan Fowler.

Huffington diz ter conversado com mais de 100 funcionários. Falando recentemente à CNN sobre o clima de trabalho tóxico para mulheres na Uber, ela afirmou: “Sim, havia algumas maçãs podres, sem dúvida. Mas não é um problema sistêmico”. Se as acusações detalhadas por Fowler – que incluem ser ignorada pela área de recursos humanos quando ela denunciou assédio – não indicam um sexismo “sistêmico” na Uber, o que mais indicaria? (Os funcionários da empresa estariam frustrados com o papel de Huffington na investigação.)

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Essas mulheres são aduladas quando estão ascendendo, porque queremos torcer por elas.

As narrativas de mulheres como Amoruso e Agrawal – jovens, carismáticas e capazes de dizer as coisas certas sobre o papel das mulheres no mundo profissional – são atraentes e seguem um padrão: são mulheres aduladas quando estão ascendendo, porque queremos torcer por elas, porque elas desafiam a ideia de que fundadores de empresa têm de ser homens e que o ambiente de trabalho não pode ser feminista. Aí, quando estão decaíndo, as reportagens ficam cheias de reclamações de funcionários insatisfeitos, o que dá um prazer particular para algumas pessoas.

Os sinais de que o estilo de gestão de Agrawal era questionável eram aparentes desde o começo, como apontou Malone no perfil da empreendedora publicado em 2016 na revista New York: “Se Agrawal fosse homem, seria um tipo reconhecido imediatamente ... Ela cria mitos a respeito de si mesma e é extremamente confiante, mesmo em situações em que não há motivos para tanto. Ela é um ‘cara da tecnologia’ – só que mulher”. Será que as falhas de Agrawal seriam dissecadas da mesma maneira se ela realmente fosse um cara da tecnologia? Ou a narrativa teria sido diferente?

No fim das contas, temos de perguntar por que estamos tão prontos a tratar qualquer pessoa como celebridade – homem ou mulher – só porque eles dizem as coisas certas. Certamente as reportagens sobre as hipocrisias de mulheres como Amoruso, Agrawal e Huffington parecem ainda mais deliciosamente irônicas por causa das mensagens que elas queriam transmitir com suas empresas. Mas o motivo básico pelo qual elas maltratam os funcionários, e as desculpas que dão quando são denunciadas, é que elas, como a maioria dos donos de empresas, querem ser bem-sucedidas – ou seja, ganhar dinheiro.

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Este post foi traduzido do inglês.

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