• newsbr badge

Numa conversa, falaram que ele “queima mato”. A polícia usou isso para acusá-lo de incendiar a Amazônia.

"As provas são ridículas", diz irmão de um dos quatros ambientalistas presos no Pará sob acusação de promover "queimadas orquestradas".

Atualização: post atualizado às 18h08 com a decisão de soltura dos ambientalistas.

Na terça-feira (26), quando foram presos quatro ambientalistas que integram a Brigada de Alter do Chão – voluntários que combatem incêndios na floresta amazônica –, a Polícia Civil do Pará apresentou áudios que, segundo a investigação, comprovariam que o grupo estava, na verdade, provocando intencionalmente as queimadas. O objetivo deles, disse a polícia, seria ganhar dinheiro de doações com a comoção causada pelos incêndios.

Uma das provas para corroborar essa tese é um áudio, resultado de grampo feito com autorização judicial, em que uma pessoa fala, em tom jocoso, que um dos indiciados "queima mato".

A expressão, uma gíria para "fumar maconha", aparece em uma conversa de setembro entre um homem e um dos indiciados:

Homem: "E aí, fotógrafo?"

Indiciado: "Quem é?"

Homem: "O fotógrafo que mais queima e apaga mato do Amazonas, da Amazônia."

Os áudios foram aceitos pelo juiz Alexandre Rizzi, da 1ª Vara Criminal de Santarém (PA), para determinar a prisão, por ao menos dez dias, dos quatro ambientalistas integrantes da Brigada de Alter do Chão. Segundo a polícia, Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Marcelo Aron Cwerver e Gustavo de Almeida Fernandes se associaram para provocar incêndios na APA (Área de Preservação Ambiental) e lucrar com o dinheiro de doações.

As investigações começaram em setembro. Em agosto, confrontado com a notícia do aumento das queimadas na região amazônica, o presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, sem provas, que ONGs poderiam ser responsáveis pelas queimadas como forma de retaliar corte de verbas: "Esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro. Então, pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil".

Com as redes sociais usando o #PrayforAmazonas para se mobilizar contra as queimadas, o presidente Jair Bolsonaro disse que os incêndios podem estar sendo provocados pelas ONGs que atuam na Amazônia.

Veja o que diz a conversa considerada pela polícia uma das provas mais importantes:

Mulher: "A gente ficou superpreocupada com o incêndio aí."

Ïndiciado: "Então, se você tiver um tempinho a gente pode conversar. Eu estou por trás de tudo, né, sou da Brigada de Alter. A gente é do Instituto Aquífero Alter do Chão, que incubou a brigada um ano e meio atrás. Estamos recebendo apoio de todo mundo. WWF está esperando uma resposta segunda-feira, de um contrato de R$ 70 mil em equipamento para a brigada."

Mulher: "Ah, que bom."

Indiciado: "A vaquinha deu R$ 100 mil da galera, uma vaquinha nossa, sem aplicativo."

Mulher: "Que coisa, hein?"

Indiciado: "Está maravilhoso, maravilhoso. E tá triste, né? Foi triste. A galera está num momento pós-traumático, mas está tudo bem."

Mulher: "Mas já controlou?"

Indiciado: "Tá extinto. É."

Mulher: "Que bom."

Indiciado: "Mas quando vocês chegarem vai ter bastante fogo. Se preparem. Nas roças inclusive."

Mulher: "É, né?"

Indiciado: "Vai. O horizonte vai estar todo embaçado."

Mulher: "Puta merda."

Indiciado: "Mas normal, né?"

Mulher: "Não começou a chover ainda [inaudível]."

Indiciado: "É... vai começar a chover. Vai começar a chover em dezembro para janeiro. Se vocês tiverem sorte, chove… [corte de gravação]"

O indiciado flagrado na conversa com a mulher é o turismólogo Gustavo de Almeida Fernandes, 36 anos.

O fotógrafo Victor Affaro, irmão do brigadista, considerou as provas "ridículas". Ele disse que o irmão trabalha com turismo e, na conversa gravada, estava falando com uma cliente em viagem para a região. E, na conversa, dizia que, apesar de o fogo já ter sido extinto, a mulher encontraria focos de incêndio pelo caminho.

A queimada da APA de Alter do Chão aconteceu entre 14 e 16 de setembro e teve grande repercussão internacional. A conversa de Gustavo com a mulher aconteceu no dia 28 daquele mês, período em que ainda havia queimadas no Pará.

A transcrição da polícia inclusive erra ao dizer que Gustavo falou em "rotas". No áudio ele diz "roças", em referência aos roçados. Proprietários rurais aproveitam a estação das secas para promover a queimada dos roçados, período que no Pará tem seu ponto alto em setembro.

"Não sei se erraram ou se escreveram 'rotas' para parecer pior. É uma briga tão grande e eles [os presos] são o elo mais fraco. As provas são ridículas", disse Victor, irmão de Gustavo, em entrevista ao BuzzFeed News.

"Meu irmão vive na floresta por escolha, numa casa sem geladeira, em que entra macaco pela porta. De repente, ele é pego no meio de um momento sombrio do nosso país, no meio de um lugar que tem interesse de todos os tipos."

O fotógrafo contou que seu pai está em Santarém para tentar libertar o filho e que as famílias vão agir conjuntamente para buscar uma solução. Nas redes sociais, parentes e amigos têm divulgado vídeos de apoio aos ambientalistas, contestando as alegações da polícia. Os ambientalistas estão presos em Santarém.

"Eles já estão na penitenciária de cabeça raspada, uniforme e havaianas, como se fossem condenados. Um deles cultivava um dread há 18 anos", disse Victor.

Caetano Scannavino, presidente da ONG Projeto Saúde e Alegria, onde Gustavo trabalha, também conversou com o BuzzFeed News. Premiada no país, a ONG de mais de 30 anos teve salas reviradas e computadores e documentos apreendidos pela polícia. "A investigação é esdrúxula. A gente sempre atuou na área para de repente acordar com viaturas e homens armados, com um mandado genérico, levando os computadores. Estamos perplexos".

O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), também reagiu à ação policial. Hoje (28), ele anunciou a substituição do presidente do inquérito na Polícia Civil. “Ninguém está acima da lei, mas ao mesmo tempo também ninguém pode ser vítima de pré-julgamento”, disse o governador.

Sobre o caso ocorrido em Santarém, determinei a substituição da presidência do inquérito para que tudo seja esclarecido da forma mais rápida e transparente possível. O diretor da Delegacia Especializada em Meio Ambiente, Waldir Freire, estará à frente das investigações.

Em nota, a Brigada de Alter do Chão negou as acusações contra seus integrantes.

"A Brigada é uma iniciativa lançada em 2018 e faz parte da organização não governamental sem fins lucrativos Instituto Aquífero Alter do Chão para cooperação no combate a incêndios na região, com apoio de pessoas físicas voluntárias. Sendo uma ação mantida pelo próprio Instituto Aquífero, é equivocada a informação de que a Brigada tenha recebido doações da organização.


A respeito da menção a vídeos publicados na plataforma YouTube em que voluntários da Brigada de Alter do Chão supostamente apareceriam ateando fogo em matas, a Brigada não teve acesso a tais vídeos. Por desconhecer seu teor, a Brigada pode desenvolver duas hipóteses. Uma hipótese é de que as imagens sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo controlados são criados para exercícios práticos. Esse tipo de exercício, praxe no treinamento de combate a incêndios, é realizado pela Brigada de Alter do Chão com a participação do Corpo de Bombeiros local e com o respaldo de licenças emitidas pelos órgãos competentes. A outra hipótese é de que os vídeos mencionados mostrem a ação conjunta de brigadistas e bombeiros utilizando a tática conhecida como “fogo contra fogo” – realizada regularmente pelo Corpo de Bombeiros no combate de incêndios. Cabe ressaltar que a Brigada de Alter do Chão aplica a tática de fogo contra fogo exclusivamente com a presença e o apoio do Corpo de Bombeiros.

A Brigada de Alter do Chão esclarece também que fez a devida declaração de doações no final do mês de setembro. Doações recebidas após esta data estão ainda sendo consolidadas em relatório e serão declaradas apropriadamente. Quanto ao valor destinado pela organização WWF-Brasil, ao contrário das informações veiculadas, trata-se não de uma doação, e sim de uma parceria firmada com o Instituto Aquífero Alter do Chão visando a aquisição de equipamentos para a Brigada. Conforme previsto no acordo, o Instituto Aquífero Alter do Chão prestará contas ao WWF-Brasil no dia 10 de dezembro de 2019", diz a nota.


Atualização: os quatro serão soltos

No final do dia desta quinta-feira (28), o mesmo juiz Rizzi decidiu pela soltura dos quatro ambientalistas. Eles continuam sendo investigados, mas em liberdade.


Utilizamos cookies, próprios e de terceiros, que o reconhecem e identificam como um usuário único, para garantir a melhor experiência de navegação, personalizar conteúdo e anúncios, e melhorar o desempenho do nosso site e serviços. Esses Cookies nos permitem coletar alguns dados pessoais sobre você, como sua ID exclusiva atribuída ao seu dispositivo, endereço de IP, tipo de dispositivo e navegador, conteúdos visualizados ou outras ações realizadas usando nossos serviços, país e idioma selecionados, entre outros. Para saber mais sobre nossa política de cookies, acesse link.

Caso não concorde com o uso cookies dessa forma, você deverá ajustar as configurações de seu navegador ou deixar de acessar o nosso site e serviços. Ao continuar com a navegação em nosso site, você aceita o uso de cookies.