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Proposta de Raquel Dodge cria “procurador biônico”, criticam procuradores em manifesto

Segundo procuradores, Dodge tentou aprovar sem debate projeto que altera de forma drástica o funcionamento do Ministério Público.

Procuradores da República estão assinando um manifesto com duras críticas à proposta da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que altera de forma drástica o funcionamento do Ministério Público.

De acordo com o manifesto, que contava com 336 assinaturas quando esta reportagem foi publicada, as alterações propostas por Dodge podem acabar por criar “procuradores biônicos”, com independência funcional comprometida e controlados, “em última análise, pela cúpula da instituição”.

Além disso, o manifesto alega que alteração tão significativa no funcionamento do Ministério Público Federal precisaria passar por processo de longo debate, algo que, segundo os signatários, não existiu.

“A radical e pouco debatida proposta da Exma. Procuradora-Geral da República concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, como efeito colateral deletério, na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos Procuradores da República, em prejuízo de sua plena independência para atuar. Ainda que confeccionado com boas intenções, é preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de Procuradores da República 'biônicos', o que em nada interessa à sociedade brasileira”, diz trecho do documento.

O manifesto, que começou a circular no domingo e tem como primeiro signatário o sub-procurador-geral da República Mario Bonsaglia, é mais um dos reflexos da reunião da última sexta-feira do Conselho Superior do Ministério Público.

Na ocasião, Dodge tentou aprovar sua proposta, mas interrompeu o processo de votação quando percebeu que seria derrotada pelo plenário.

Pelo funcionamento atual do MPF, cada procurador responde por um ofício, que atua numa das áreas do Ministério Público, como em casos criminais, na defesa do meio ambiente ou na defesa dos direitos humanos, entre outros.

O procurador de cada uma dessas áreas é alçado ao posto com base no critério da antiguidade.

Pela proposta de Dodge, ofícios-polo seriam criados e eles passariam a responder por algumas destas áreas.

Com isso, em vez dos casos serem destinados aos chamados procuradores naturais, eles seriam remetidos aos ofícios-polo com procuradores designados após aprovação de seus nomes pela cúpula do Ministério Público e com mandatos de dois anos.

Na reunião de sexta, tais pontos, como a possível perda de independência funcional e celeridade para aprovação do projeto, já haviam sido levantados por procuradores que estavam na reunião e por alguns dos próprios membros do Conselho Superior.

Ao rebater os argumentos sobre a tramitação da proposta, Dodge disse que ela promoveu mais 60 reuniões sobre o tema, algo negado pelos presentes.

FALTA DE DIÁLOGO

O diálogo de Raquel Dodge com sua base é outro dos pontos de tensão no Ministério Público.

Após a reunião e da divulgação pelo BuzzFeed News da intenção de procuradores entregarem suas funções voluntárias nesta segunda-feira, como as que ocupam em grupos de trabalho e na coordenação de fóruns setoriais, Dodge divulgou uma carta nas redes do Ministério Público Federal.

Na carta, fez um apelo para que os postos não sejam abandonados e se disse aberta ao diálogo. Ela ainda destacou que, caso a imprensa buscasse informações sobre o caso, ela teria que fornecer.

A atitude foi interpretada por integrantes do MPF como uma ameaça de que nomes seriam expostos na imprensa, o que levou a uma maior degradação da relação de Raquel com sua base.

Após a carta de Raquel, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Robalinho Cavalcanti, também se manifestou na rede interna dos procuradores.

Disse que a classe tenta diálogo com a PGR desde dezembro, tendo intensificado suas ações em janeiro, mas que não recebeu respostas de Dodge para questões que vão desde a remuneração dos procuradores à organização de seu trabalho.

Com o fim do auxílio-moradia, procuradores passaram a receber menos e tentam garantir a isonomia prevista na Constituição para sua atividade com relação aos membros do Judiciário.

Devido às regras para o acúmulo de funções, juízes estão ganhando em média 16% a mais que procuradores, segundo estudo da ANPR.

Além disso, também tentam há mais de um ano regulamentar o trabalho a distância, mas as propostas não andam na velocidade desejada por parte dos procuradores na gestão de Raquel Dodge.

Procurada, a assessoria de Raquel Dodge não se pronunciou sobre o manifesto até a publicação deste texto.

Veja abaixo a íntegra do manifesto dos procuradores:

"Manifesto em defesa da independência funcional no Ministério Público Federal

Os membros do Ministério Público Federal (MPF) que assinam este manifesto vêm a público externar sua preocupação com o projeto de resolução recentemente apresentado pela Exma. Procuradora-Geral da República, voltado à criação de “ofícios especializados de atuação concentrada em polos”.

Da maneira como redigida, a proposta, sob alegação de conferir maior eficiência e especialização à atuação do MPF, altera significativamente os critérios que disciplinam a distribuição de casos entre os Procuradores da República em todo o país.

Preocupa ainda, e em especial, a tentativa de aprová-lo a toque de caixa no Conselho Superior da instituição, em prejuízo de uma discussão mais aprofundada, tendo em vista seu caráter profundamente reestruturante.

Na configuração atual, em vigor desde a promulgação da Constituição de 1988, a definição do Procurador responsável por cada investigação, o chamado “Procurador natural”, observa critérios objetivos de distribuição previstos na lei e na própria Constituição.

A finalidade de tais critérios é assegurar à sociedade transparência quanto à forma de escolha do Procurador natural para cada caso, impedindo qualquer tipo de interferência em sua designação, seja da própria cúpula da instituição, seja de agentes externos, bem como garantir que não haverá intromissões indevidas tanto na instauração quanto no curso das investigações.

Escolhido de forma objetiva e protegido de interferências externas, tem-se um ambiente ideal para que o Procurador da República responsável por cada investigação atue com independência, buscando apenas a fiel aplicação da lei. Esta, a chamada independência funcional, é a pedra angular do modelo de Ministério Público brasileiro, instituído pelo Constituinte de 1988.

Além disso, essa independência é a principal chave para compreender como, ao longo das últimas três décadas, o Ministério Público Federal passou a ser percebido pela sociedade brasileira como uma instituição de excelência, gozando de inegável credibilidade, através do desenvolvimento de trabalhos relevantes, não apenas ligados à operação Lava Jato e ao combate à criminalidade em geral, como também, no âmbito da tutela dos direitos coletivos, em defesa da boa gestão de recursos públicos, do meio ambiente, dos direitos das populações indígenas e quilombolas e das liberdades civis de todos os cidadãos.

Já o projeto de resolução em questão pretende modificar as formas de designação de membros que atuarão em casos prioritários, relacionados a “problemas crônicos ou de alta complexidade” que chegarem ao Ministério Público Federal. Pela proposta, esses casos especiais passariam a ser conduzidos por membros definidos, em última análise, pela cupula da instituicao, nao mais por membros que alcançaram os ofícios pelo critério legal e objetivo da remoção.

Tampouco teriam a permanência garantida na condução desses casos, criando-se a necessidade de renovação de sua designação a cada dois anos, situação sem paralelo na atuação de juízes, delegados, auditores fiscais e tantas outras carreiras.

A radical e pouco debatida proposta da Exma. Procuradora-Geral da República concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, como efeito colateral deletério, na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos Procuradores da República, em prejuízo de sua plena independência para atuar.

Ainda que confeccionado com boas intenções, é preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de Procuradores da República “biônicos”, o que em nada interessa à sociedade brasileira.

Nesse contexto, os signatários entendem que merece ser vista com cautela a tentativa de aprovação, de modo sumário, de uma proposta que tem grande potencial para minar essa dinâmica objetiva, impessoal e plural de tratamento das questões sob atribuição do Ministério Público Federal.

Não se trata de descartar o desenvolvimento de estratégias de especialização e de maior eficiência e a ampliação de mecanismos de accountability nas atividades ministeriais. Todavia, essa discussão deve ser feita de forma ampla, aprofundada e cuidadosa, considerando-se inclusive seus reflexos frente às diferentes realidades do País.

Para que o MPF possa seguir cumprindo sua missão constitucional, atendendo à sociedade brasileira, é indispensável, pois, seja mantido o pleno respeito ao modelo estabelecido pela Constituição de 1988, a bem do Estado Democrático de Direito".

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