• newsbr badge

Miriam sofreu um aborto espontâneo, mas acabou 14 anos na cadeia por homicídio

Após ter sofrido uma queda, Miriam Frías deu à luz com três meses de antecedência. Sofrendo uma hemorragia, ela chegou desmaiada no hospital. Sua filha, morta, foi encontrada em casa. Então as autoridades mexicanas a prenderam por homicídio.

ENSENADA, BAIXA CALIFÓRNIA, MÉXICO — Na manhã de 21 de maio de 2004, Miriam Frías, 33, estava na escola de sua filha de 7 anos quando a cadeira de plástico em que estava sentada cedeu. Apesar de estar grávida de 25 semanas (pouco mais de seis meses) — e ter batido a barriga ao cair — ela não deu muita atenção à queda naquele momento.

Naquela tarde, ela deu permissão à sua filha para dormir na casa da avó e decidiu passar a noite descansando. Enquanto assistia na TV ao casamento real do Príncipe Felipe, da Espanha, ela começou a sentir uma forte vontade de urinar. Então, ao sentar no vaso sanitário, deu à luz subitamente, com apenas 6 meses de gestação.

Miriam estava sozinha em casa, então cortou o cordão umbilical e descolou a placenta de si mesma o melhor que pôde. O bebê não respirava nem se mexia. Miriam sangrou tanto que desmaiou. Quase 18 horas se passaram antes que seu namorado, José, a encontrasse deitada no piso do banheiro e a levasse ao hospital. (Miriam pediu que o sobrenome de José permanecesse anônimo, visto que os dois se separaram e não mantêm mais contato) Miriam ainda tem lapsos de memória quanto ao que aconteceu após dar à luz. Os psiquiatras que a trataram disseram que ela estava em estado de choque.

O que se sabe ao certo é que o feto nascido morto foi posteriormente descoberto dentro de uma mochila. E Miriam acabaria passando os 14 anos seguintes de sua vida na cadeia por causa disso.

Segundo organizações de direitos humanos, o que Miriam vivenciou foi um "parto inesperado" — um parto que não pode ser previsto e no qual o feto pode nascer vivo ou morto. Como a maioria das mulheres que tiveram essa experiência, Miriam foi julgada em vários níveis por isso: pela sociedade, por não cumprir o papel da maternidade; pelas instituições de saúde; e pelo sistema legal, segundo o AsíLegal, organização ativista que forneceu assessoria jurídica a Miriam.

O Estado da Baixa Califórnia tem a taxa mais alta de investigação contra mulheres que abortam no México — 5,4% de cada 100.000 mulheres entre 15 e 45 anos têm sido investigadas, segundo o relatório Maternidade ou Castigo mais recente do GIRE (Grupo de Informações sobre Escolha Reprodutiva). A Cidade do México tem a segunda maior taxa, com 4,2%, e depois a Baixa Califórnia do Sul, com 3,3%. De 2015 a 2018, 1.666 processos criminais foram abertos para investigar abortos no país.

No México, dependendo do tribunal e do juiz presidindo a corte, as sentenças impostas contra mulheres podem chegar a 6 anos por fazer um aborto, 8 por infanticídio e até 20 caso sejam acusadas do "homicídio de um parente de sangue". A Baixa Califórnia também é um dos 18 Estados mexicanos que "protegem a vida desde a concepção", uma medida legal que infringe os direitos reprodutivos das mulheres, segundo o relatório da organização do GIRE.

Segundo Adriana Aguilar, advogada do AsíLegal, há Estados que chegam ao ponto de levar em consideração a "reputação" da mulher, conceitos sociais de "vergonha" e "desonra", o estado psicológico da mulher ou a opinião de seus cônjuges ao processar mulheres judicialmente.

Independentemente de ser um parto inesperado, um aborto espontâneo ou um aborto voluntário, as autoridades mexicanas costumam basear seus julgamentos contra mulheres na ideia de que a maternidade é uma obrigação natural, em um esforço para criminalizar aquelas que falham em obedecer a essa noção, rotulando-as como "perversas ou doentias", segundo Aguilar.

"Não queríamos nos livrar da bebê", disse Miriam Frías ao BuzzFeed News. "Meu namorado disse [às autoridades] que, se não quiséssemos tê-la, ele poderia simplesmente ter me levado a San Diego. O aborto é legal lá na Califórnia; tínhamos condições de ir — nós dois tínhamos vistos e sabíamos onde ficavam as clínicas para fazer o aborto legalmente e sem riscos."

Miriam Frías queria batizar seu bebê como Nadia. Apesar de aquela não ter sido uma gravidez planejada, ela estava feliz em ter mais um filho. Ela tinha uma vida estável e estava prestes a se mudar com o namorado para uma nova casa. Eles tinham um berço pronto e queriam se casar. Formada em química na Universidade Autônoma de Sinaloa, Miriam ganhava a vida como representante médica em vários hospitais da região.

"Não foi planejado, mas também não foi indesejado. ... Meu parceiro disse a eles: 'Se ela quisesse abortar, ela não teria esperado a gravidez estar tão avançada. Além disso, ela saberia quais remédios tomar [para um aborto], já que ela é química [farmacêutica'", disse Miriam Frías ao BuzzFeed News.

Como ela sabia que o Hospital Geral de Ensenada tinha boa reputação, foi até lá para buscar ajuda. Mas, assim que chegou, o médico perguntou "o que ela havia tomado" e "onde o bebê estava". Apesar de ainda estar em estado de choque psicológico e se recuperando da hemorragia, o que exigiu várias transfusões de sangue, as autoridades locais já estavam procurando detê-la. Mais tarde, ela disse que a polícia entrou em sua casa, sem um mandado de busca, e encontrou o feto dentro de uma mochila.

"Foi assim que a acusação de que eu havia assassinado a bebê surgiu. A bebê estava morta [quando nasceu], simples assim. Se eu a coloquei lá, e acho que eu realmente a coloquei lá, não me lembro do momento em que fiz isso, ou porquê. O que posso dizer é que não havia mais ninguém lá", relembra.

José, um advogado, foi o primeiro a avisá-la de que ela poderia ser presa por causa do parto. Ele chegou a sugerir que ela fugisse para os Estados Unidos, mas ela se recusou.

Miriam Frías foi detida no hospital naquela mesma semana, antes de ser transferida para um centro de detenção e, mais tarde, para o Centro de Reabilitação Social (CERESO) em Ensenada. José, que é advogado, lhe disse que ela teria que passar pelo menos seis meses na cadeia durante o processo de julgamento e sentença.

Enquanto isso, alguns jornais locais inventaram uma narrativa diferente, segundo ela — um jornal disse que ela havia jogado o feto contra uma parede, enquanto outro disse que ela o havia enterrado. As demais presidiárias perguntavam se ela realmente era a personagem maligna descrita pela imprensa local que havia chocado a sociedade em Ensenada. Seu irmão teve que intervir — com relatórios da perícia e a ameaça de uma ação judicial em mãos — para evitar a publicação de mais matérias.

"Ficaram revoltados com a forma como o bebê foi encontrado. Se tivessem dito 'mulher louca tranca bebê em mala' ou algo assim, teria sido mais fácil de aceitar, mas eles não faziam ideia do que realmente havia acontecido", disse.

Segundo Miriam Frías, a teoria levantada pela Procuradoria Geral foi de que ela quis "se livrar do bebê" porque José não era o pai biológico. (A má-fé faz parte do critério que procuradores mexicanos usam para determinar se a ofensa conta como homicídio de um parente de sangue.) Os peritos da Procuradoria determinaram que o feto havia morrido por asfixia e sido incinerado. O BuzzFeed News tentou contatar o procurador público da época do caso de Miriam Frías, mas não obteve resposta.

Quando os resultados dos testes de DNA exigidos pela Procuradoria Geral foram entregues, foi constatado que Miriam e seu namorado eram, de fato, os pais. Miriam lembra de ter se sentido aliviada, já que isso confirmava a falta de evidências contra ela.

Um ano após ser presa, Miriam foi condenada por Amalia Gutiérres de la Peña, juíza que virou notícia recentemente após libertar um estuprador em Ensenada. Ela estava esperando uma sentença de um a seis anos de cadeia. Em vez disso, foi condenada a 27 anos e 5 meses por homicídio de um parente de sangue.

"A juíza me disse que nada do que eu fizesse iria me ajudar, que ela não iria me soltar, independentemente de qualquer recurso legal que eu apresentasse. Eu caí em prantos. Eu disse: 'A senhora tem que obedecer à lei', e ela respondeu: 'É exatamente isso que estou fazendo', e foi embora. Eu sabia que estava ferrada, só não sabia o quanto", declarou.

Enquanto esteve encarcerada na penitenciária da cidade de Ensenada, Miriam deu aulas preparatórias e de alfabetização. Ela jogava basquete e softbol, aprendeu a costurar e a cortar cabelo, fez terapia. Ela se concentrou na sua fé católica e em fazer artesanato. Após um tempo, seu relacionamento com José acabou. Ela se acostumou à nova rotina, mas nunca se acostumou com a saudade da filha, a quem disseram que ela estava fora viajando.

"Minha filha ficava perguntando: 'Onde está a minha mãe? Já faz tanto tempo que ela viajou.' É... foi bem difícil contar a ela. Quando ela fez 9 anos, o meu pai a trouxe para me visitar. Sei lá — eu diria que a minha filha é bem especial, porque ela nunca viu a situação de um jeito negativo. Ela não foi afetada pelo fato de eu estar na cadeia", diz Frías.

O aborto legal do outro lado da fronteira está distante

Segundo um relatório de 2009 do Ministério da Saúde mexicano, os abortos clandestinos são a segunda causa principal de hospitalização na Baixa Califórnia, com 1846 casos, um número intimamente ligado ao fato de que as mulheres que buscam os centros de saúde pública não podem ter suas gestações legalmente interrompidas.

Segundo o coletivo Las Bloodys, poucas mexicanas das cidades de fronteira têm acesso a serviços para interromper legalmente suas gestações, já que para isso elas precisam ir para San Diego, na Califórnia, onde há clínicas de planejamento familiar.

"Há a questão do privilégio de classe. Poucas mulheres têm condições de entrar nos Estados Unidos por terem vistos e o dinheiro para pagar a clínica de planejamento familiar. O restante não tem condições, e elas são forçadas a optar por procedimentos clandestinos e insalubres," diz Yessica Lizbeth, integrante do coletivo.

Documentos fornecidos pelas ativistas mostram que, em San Diego, os abortos sem agendamento para gestações de até 23 semanas e 6 dias podem custar até US$ 3.000. Outra opção é viajar para a Cidade do México e fazer um aborto gratuitamente em qualquer clínica de saúde pública, mas somente durante as primeiras 12 semanas de gravidez.

Em sua tese escrita para o Colegio de la Frontera Norte, "Cruzar a fronteira para abortar em silêncio e sozinha", Norma Ojeda informa que as mulheres mexicanas representam entre 15 a 31% de todas as mulheres que abortam em San Diego e Riverside. No entanto, os dados de Ojeda são de 1993, e ela aponta as dificuldades de se obter números atualizados, já que várias mulheres da Baixa Califórnia que vão a clínicas se cadastram com um endereço americano.

"Mesmo que as mulheres que cruzam a fronteira com os Estados Unidos para abortar sejam capazes de escapar dos riscos à saúde e de serem presas, elas não escapam necessariamente do isolamento social de ter que vivenciar um aborto e seu resultado", escreveu.

O problema é ainda pior ao se confundir os abortos espontâneos com os voluntários. Segundo Aguilar, a advogada do AsíLegal, "este é um grupo de mulheres que foram feitas invisíveis, que estão sendo condenadas pelo homicídio de um parente de sangue. Elas não estão na cadeia por um aborto, mas por homicídio. Mesmo que o que elas tenham sofrido tenha sido, na verdade, um aborto espontâneo."

Os dados podem ser solicitados por meio de leis de transparência, diz Aguilar, mas quase não há dados confiáveis sobre o número de mulheres condenadas pelo homicídio de um familiar após sofrerem um aborto espontâneo. Segundo organizações de direitos das mulheres, as autoridades mexicanas registram todos os homicídios dentro da mesma categoria sem especificar quais deles são abortos voluntários ou espontâneos.

O AsíLegal tem fornecido assessoria jurídica a mulheres em casos semelhantes ao de Miriam em vários estados mexicanos. Enquanto isso, o GIRE tem documentado mais casos de mulheres condenadas por abortos espontâneos, deixando claro em seus relatórios o pensamento por trás das acusações: "O motivo por trás das ações de juízes e agentes da procuradoria é estigmatizar mulheres e impor castigos 'exemplares'."

A primeira coisa que Miriam fez ao sair da prisão foi sair para jantar tacos de carne assada com sua filha e sua família. Apenas cinco meses se passaram desde que ela foi libertada antecipadamente sob condicional, após ter sua sentença reduzida para 22 anos, graças a um recurso que retirou uma das acusações contra ela.

Enquanto contava a história de sua libertação, após cumprir 63% de sua pena, ela recebeu uma ligação da penitenciária de Ensenada. Uma das presidiárias queria saber se Miriam já havia ajudado a pagar sua fiança, ao que Miriam respondeu que sim. "É verdade. Não chora porque eu também vou chorar, me liga e eu vou te buscar", disse.

Miriam, que agora tem 48 anos, é uma líder entre as presidiárias restantes, a quem ajuda como se fossem suas irmãs. "Não vou perder meu tempo caçando fantasmas, já perdi anos demais da minha vida para me fechar ou ter medo a esta altura. Quero estar bem para a minha família e a minha filha. Voltei para casa como se nunca tivesse saído de lá", disse.

Após deixar a prisão, ela decidiu montar um negócio de bijuterias para dar emprego às mulheres que ainda estão na cadeia e que, devido à sua idade, provavelmente não serão capazes de encontrar trabalho quando saírem da cadeia que não seja trabalhar em maquilas na fronteira.

As autoridades carcerárias concederam a ela um empréstimo para obtenção de matéria-prima depois que Mirna Ibarra, presidente do Sistema Nacional para o Desenvolvimento Familiar Integral (DIF) em Ensenada, ter gostado dos colares e pulseiras que viu.

Ter um emprego é um dos requisitos impostos pela juíza como parte da condicional durante os próximos sete anos. Miriam também precisa ter um endereço permanente, realizar exames toxicológicos a cada dois meses e se apresentar mensalmente à penitenciária. Ela ainda precisa pedir autorização para viajar e não tem direitos políticos.

Apesar dessas restrições, Miriam parece tranquila e sorri como alguém que acabou de reconquistar sua liberdade. Atualmente, ela passa seu tempo trabalhando, indo ao cinema e ao malecón e retomando velhas amizades. Ela divide seu tempo entre a casa de seus pais e a casa de seu atual namorado, Felipe Sánchez, um apaixonado por motocicletas com quem divide a admiração por Marilyn Monroe.

Neste ano, no México, mulheres se organizaram para exigir a legalização e a descriminalização do aborto, a fim de evitar que mais casos como o de Miriam aconteçam. Elas seguiram a liderança das mulheres argentinas, que fizeram propostas concretas aos legisladores e ocuparam as ruas para exigir seus direitos reprodutivos.

Apesar da congressista Lorena Villavicencio, do Movimento de Regeneração Nacional (conhecido por sua sigla em espanhol, Morena) ter apresentado um projeto de lei para descriminalizar nacionalmente o aborto feito com até 12 semanas de gravidez, seu esforço para emendar o Código Penal Federal tem sido questionado por não repelir nenhuma das sanções contra mulheres que já abortaram.

Em uma entrevista para o BuzzFeed News do México, a deputada Villavicencio deixou claro que as sanções criminais seriam levadas em conta e que tentaria evitar condenações à prisão. A deputada é do mesmo partido do presidente Andrés Manuel López Obrador, empossado este mês.

"Buscaremos alternativas à pena na prisão, tais como serviço comunitário. Encontraremos outra forma, mas evitaremos sentenças à prisão para mulheres a todo custo", disse.

Ao encarar o fato de que tal reforma não ajudaria mulheres já encarceradas por abortos espontâneos, Villavicencio disse que esses casos seriam examinados para anistia proposta por López Obrador.

"Há uma proposta de perdoar mulheres que estão atualmente na cadeia por essa situação. Essa proposta faria cumprir um princípio constitucional que vai além do que o Código Penal declara. Ele entraria em vigor assim que começássemos a avaliar a possibilidade de anistia para mulheres grávidas, assim como para mulheres ligadas a crimes relacionados à posse e ao tráfico de maconha", disse.

Após o tempo em que Miriam esteve na prisão, ela tem uma relação pendular com o aborto – católica, às vezes é a favor, às vezes é contra a interrupção voluntária da gestação.

"O que eu posso ser a favor é de que, se algo como o que aconteceu comigo acontecer com você, se você quiser fazer um aborto, você não deve ser julgada legalmente; se você acredita em Deus, deixe que Ele te julgue, não um homem."

A tradução deste post (original em espanhol) foi editada por Luísa Pessoa.

Utilizamos cookies, próprios e de terceiros, que o reconhecem e identificam como um usuário único, para garantir a melhor experiência de navegação, personalizar conteúdo e anúncios, e melhorar o desempenho do nosso site e serviços. Esses Cookies nos permitem coletar alguns dados pessoais sobre você, como sua ID exclusiva atribuída ao seu dispositivo, endereço de IP, tipo de dispositivo e navegador, conteúdos visualizados ou outras ações realizadas usando nossos serviços, país e idioma selecionados, entre outros. Para saber mais sobre nossa política de cookies, acesse link.

Caso não concorde com o uso cookies dessa forma, você deverá ajustar as configurações de seu navegador ou deixar de acessar o nosso site e serviços. Ao continuar com a navegação em nosso site, você aceita o uso de cookies.