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A Venezuela tentou me convencer de que a revolução vai bem, obrigada

Um guia turístico destacado pelo governo Nicolás Maduro levou o BuzzFeed News a alguns lugares de Caracas com o intuito de mostrar que o regime está funcionando. Falando com as pessoas é fácil perceber que, na verdade, não é bem assim.

CARACAS, Venezuela — A gente tentava contar quantas pessoas estavam na fila do pão quando William Contreras chegou.

Cerca de 20 pessoas já estavam na fila que se formava em uma padaria no bairro de Catia, na capital venezuelana, quando mais umas seis passaram correndo por mim e pelo fotógrafo Cristian Hernández. Era um retrato perfeito da situação de desespero de um país que, até há alguns anos, aproveitava a bonança do dinheiro do petróleo.

Contreras era nosso guia turístico escolhido pelo governo, um homem atarracado, com cabelo grisalho e 50 anos de idade. Quando ele se aproximou, pareceu não reparar na fila da padaria.

Pelas próximas sete horas, a missão de Contreras — me passar uma imagem positiva da Venezuela — deixou claro que ele não tem um dos trabalhos mais fáceis e tranquilos. Mas eu fiquei feliz com sua companhia: na prática, o governo venezuelano não dá acesso a nenhum veículo independente de mídia, a quem autoridades como o ministro das Relações Exteriores, Delcy Rodríguez, atribuem a responsabilidade de criar uma imagem de "histeria" na comunidade internacional.

Na Venezuela, as imagens exibidas por canais de TV controlados pelo Estado e o que de fato está acontecendo nas ruas são duas coisas muito diferentes.

Para contornar o problema, eu fiz o que repórteres que trabalham em países autoritários normalmente fazem: por meio dos canais oficiais, neste caso o ministro da Comunicação, Ernesto Villegas. Ele me colocou em contato com alguns líderes comunitários, que por sua vez me apresentaram Contreras.

Era pouco depois das 8h da manhã de um domingo quando Cristian e eu embarcamos no banco de trás da caminhonete branca de Contreras. Assim como a maioria das pessoas que conhecemos naquele dia, Contreras não perdeu tempo com apresentações e logo iniciou um discurso laudatório sobre o legado do ex-presidente Hugo Chávez e sobre as tentativas de seu sucessor em preservar esse legado.

"Nós estamos lutando nossa própria luta. Uma luta que nós gostamos — amamos", ele disse, com uma pitada de raiva.

A raiva se tornou um sentimento dominante na Venezuela, pois após anos de escassez de produtos — de antibióticos a frango —, violência crescente, eleições canceladas e inflação de três dígitos o país ficou à beira do colapso. Já no terceiro mês de protestos da população, e com a maioria dos vizinhos denunciando as tendências autoritárias do presidente Nicolás Maduro, o país latino se tornou quase uma nação pária.

Uma das prioridades do governo em meio ao caos é fazer com que qualquer foco de apoio que ainda exista no país seja mostrado pela mídia local, controlada pelo próprio governo. Era a missão de Contreras me mostrar esses últimos bastiões de lealdade, onde a "revolución", ao menos em teoria, continua a todo vapor.

A assistente de Contreras, Indira Martínez, sentou-se ao nosso lado conforme deixávamos a praça. Cinco mulheres continuaram mudas na caçamba da caminhonete; elas jamais se apresentaram ou puxaram conversa, mas nos seguiam de perto o tempo todo, principalmente quando falávamos com estranhos.

A primeira parada do dia foi uma área que antes pertencia à Coca-Cola. Em 2009, a empresa concordou em se mudar para outro lugar para que o governo pudesse construir casas populares no local. As casas nunca foram construídas — em vez disso, há no espaço 55 pequenos lotes de plantação, com ingredientes que vão de alface a coentro, comida que o governo diz alimentar cerca de 300 famílias. A fome tornou-se um problema comum no país — em 2016, cada venezuelano perdeu em média 8,5 kg de peso.

A coordenadora do jardim urbano, Antonia Aldana, nos recebeu na entrada. "Eu sou uma lutadora incansável", ela disse como forma de dizer "oi". "Eu vou aonde quer que a revolução me leve."

Enquanto caminhávamos entre a plantação, ela disse que o jardim é parte dos Comitês Locais de Produção e Provisão de Alimentos, conhecidos por suas siglas em espanhol (Clap), um programa governamental para distribuir comida. Maduro lançou o Clap no ano passado, como resposta ao que ele chamou de "guerra econômica", um esforço da burguesia local apoiada pelos Estados Unidos para desestabilizar o governo socialista.

O objetivo de longo prazo do programa é fazer com que a Venezuela atinja a soberania alimentar, afirmou Contreras. Nos últimos meses, o programa passou a incluir a distribuição de itens relacionados à maternidade, como leite em pó e fraldas. Remédios também devem entrar no programa, segundo autoridades.

Há um porém: "É apenas e exclusivamente para os revolucionários", disse Contreras.

Alguns segundos depois, ele se corrigiu: os bens subsidiados são distribuídos para todos, sem levar em conta lealdade política. (Isto pode ser verdade oficialmente, mas algumas pessoas com quem conversei disseram correr o risco de perder subsídios se não comparecerem a manifestações pró-governo.)

Fora do terreno, um grupo de mulheres estava sentado na calçada esperando para retirar sacolas de comida reservadas para as crianças mais jovens da comunidade. É um programa piloto em Caracas: quando o governo percebeu que crianças estavam deixando de ir à escola porque os pais não tinham como alimentá-los, líderes locais passaram a doar comida extra, disse Contreras.

Zaida Claderón, que comanda o programa no bairro de Catia, mostrou-me um papel com o cardápio da semana — carne com massa na quarta-feira, arroz com frango na quinta, frango desfiado com purê de batata na sexta — conforme chegavam mais mulheres à fila.

A filha pré-adolescente de Zaida estava sentada com as costas na parede, cercada de sacolas com milho, batata e frango. Ela franzia o cenho ao mirar as mulheres na fila, enquanto homens completavam suas cestas com carne e açúcar.

Perguntei a Zaida, que trabalha no escritório do prefeito inspecionando casas construídas em áreas de risco, se ela teria tempo para levar a filha para fazer algo divertido depois dali. "Essa é a diversão dela", Zaida me respondeu.

10h00

De volta ao carro, a assistente de Contreras, Indira, tinha muita curiosidade sobre como é a vida fora da Venezuela. Ela me contou que a irmã se mudou recentemente para o México, país em que eu moro, e estava curiosa: o que aconteceu com os 43 estudantes que desapareceram no Estado de Guerrero?

Eu repito a versão oficial — de que eles foram detidos pela polícia e depois entregues a traficantes locais, que os assassinaram —, mas acrescento que muitas pessoas não acreditam nessa história. Ela concordou com a cabeça. Esse tipo de coisa não acontece na Venezuela, depois acrescentou.

No meio tempo, Contreras estava concentrado em consertar a janela do passageiro com a ponta dos dedos. Nossa próxima parada era um armazém em que as caixas do programa social são despachadas para diferentes partes de Caracas. Um enorme mural com o rosto de Chávez adornava o local com dizeres: "Chávez não morreu, se multiplicou."

Não havia entregas marcadas para aquele dia. O lugar estava vazio, exceto por nós.

Na parte de baixo, dezenas de pessoas estavam sentadas em cadeiras de plástico, esperando para se cadastrar no carnet de la pátria, outra iniciativa recente do governo. Contreras disse que a nova identificação permitirá às pessoas comprar os alimentos subsidiados eletronicamente, e ter acesso a outros programas governamentais.

Uma das jovens esperando na fila disse pra mim que a nova identidade é necessária para ter acesso a quase tudo — incluindo transações bancárias. Antes de ela ter a chance de me falar seu nome, Contreras apareceu e pôs o braço ao redor dos meus ombros para me levar a uma sala ali perto, onde outro grupo de pessoas esperava para serem fotografadas. Eles respondiam um breve questionário:

  • Qual é a sua renda?
  • Você possui animais de estimação?
  • Você sente dor de dentes?

Uma lista escrita a mão estava pendurada na parede com os contatos dos coordenadores de telecomunicação das várias áreas de Catia. Em vez de procurar a CanTV, estatal responsável pelos sinais de internet e telefone, os usuários podem ligar diretamente para os líderes locais quando o serviço não funciona. A responsável por fazer a ponte entre a empresa e os líderes, uma mulher chamada Carmen Huice, foi para um canto e sussurrou algo no ouvido de Contreras.

Todos ali pareciam querer a amizade de Contreras.

12h30

O motorista estacionou em uma esquina próxima ao local onde havia ocorrido um violento protesto dias antes. Ele queria nos mostrar como voluntários estavam limpando a bagunça "feita por terroristas" durante o confronto — é assim que simpatizantes do governo se referem a manifestantes.

Logo que a gente desembarcou, Indira me disse para esconder o celular. Eu obedeci, um pouco surpresa ao perceber que estar junto com um líder chavista não me garantia segurança. No lado de fora, um grupo de mulheres vestidas com camisas e bonés vermelhos estampados com frases de apoio a Chávez nos esperava para um passeio.

Andamos por vários quarteirões numa rua estreita, que tinha cheiro de cocô e gasolina. Não havia garis à vista.

Finalmente chegamos a uma escola pública onde líderes comunitários planejavam atividades para a semana e estudantes de medicina faziam check-ups nas crianças. Partes do prédio estavam no escuro: as lâmpadas quebraram e não havia dinheiro para repô-las, disse uma apoiadora do regime, Griselda Oliveros.

Recentemente, ela ficou responsável por supervisionar a implantação do Plano 700, um programa social realizado junto com as forças armadas para garantir que 90% da produção de cada padaria seja dedicada ao pão, que é regulamentado pelo governo, e apenas 10% a outros bens considerados "luxo", como sobremesas.

Assim como os outros cerca de 700 inspetores, Griselda vigia padarias de Caracas, contando os sacos de farinha para ter certeza de que ninguém está roubando.

14h00

A última parada do dia: um hospital público operado em parte com médicos cubanos, no bairo de 23 de Enero, um reduto chavista na capital Caracas.

Um simples pedaço de papel preso com fita ao lado de retratos de revolucionários da esquerda latino-americana passa a mensagem do governo sem rodeios: "Sejamos claros: ninguém aqui fala mal do Chávez ou da revolução."

Existem cerca de 550 centros do tipo pela Venezuela. Eles foram criados em 2003 por Chávez, num esforço para levar serviços médicos especializados à população periférica.

Uma médica cubana nos recebeu no lobby, se apresentando como coordenadora do hospital, mas pediu que seu nome não fosse publicado porque não havia sido autorizada a falar com jornalistas. A médica, que contou ter chegado à Venezuela há cinco anos e está ansiosa para voltar a Cuba, em junho, ficou relutante em nos mostrar o hospital.

À primeira vista, a clínica parecia em boas condições. Os armários tinham algumas seringas e caixas de remédio, uma raridade em meio à escassez de medicamentos no país. Pela primeira vez no dia, Contreras pareceu relaxar um pouco.

Ao caminharmos em direção à saída, Mery Mendoza, uma mulher de meia-idade que atua como voluntária na clínica, se aproximou de Contreras.

A voz trêmula de Mery transbordava frustração, enquanto ela desandava a reclamar para ele: o hospital não tinha nada além de arroz para alimentar os doentes; um dos corredores ficou escuro por vários dias; os pacientes tinham que levar seus próprios sabonetes e tinham que doar água sanitária para o chão ficar limpo.

Fora isso, o ar-condicionado do necrotério estava quebrado.

A médica cubana havia se juntado à conversa e concordou silenciosamente. Não fosse pela boa vontade dos parentes de alguns pacientes, o lugar estaria um desastre, ela disse, mas era difícil continuar aceitando a ajuda sabendo que ela vem de gente que também está lutando para ter dinheiro.

Naquela hora, Contreras pareceu ter vontade de evaporar. Ele saiu andando assim que teve a chance.

Mery o seguiu: "Você viu as ambulâncias?", questionou, mostrando uma delas. Um dos veículos estava sem capô e o motor estava à mostra.

A voluntária pediu que Contreras enviasse uma carta a Freddy Bernal, diretor do programa social de distribuição de alimentos e um dos líderes proeminentes do regime chavista, em nome do hospital. Ela afirmou que os funcionários buscaram ajuda de várias autoridades, incluíndo o ministro da Saúde, mas ninguém resolveu o problema.

"Sim, sim. Você vê, a visita trouxe um resultado positivo", Contreras disse a ela com um sorriso amarelo, enquanto entrava no carro e prometia ajudá-la. Ele ficou visivelmente irritado e, enquanto o motorista dava a partida, admitiu pra mim que seria perda de tempo enviar a carta. A burocracia, ele acrescentou, "é um dos problemas recorrentes na revolução".

Cristian perguntou a ele se o sentimento de impotência e invisibilidade entre venezuelanos foi o que levou uma mulher a atirar uma manga na cabeça de Maduro, em 2015, em um comício governista. "Se puder, me ligue", dizia um bilhete preso à fruta.

Contreras desviou da pergunta. Os olhos de Chávez, incrustados na parede de concreto em um campinho de futebol, pareciam seguir nosso carro enquanto íamos embora. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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