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A maneira como falamos sobre Kanye West está errada

Precisamos urgentemente de novas formas de falar sobre figuras públicas que convivem com problemas mentais.

Tem sido um ciclo cansativo de notícias sobre Kanye West, mas não como se qualquer ciclo de notícias sobre Kanye fosse divertido. No inicio deste mês, West anunciou que está concorrendo para presidente e pouco depois deu uma longa entrevista para a "Forbes" em que, dentre outras coisas, disse que não é mais um apoiador de Donald Trump.

A entrevista para a "Forbes", como muitos surtos públicos de West, é incoerente e não se sustenta. O rapper vai desde prometer dirigir os Estados Unidos como "Wakanda" a dizer que a razão de ter colocado o boné "MAGA" (Make America Great Again, slogan dos trumpistas) era porque odeia "a segregação de votos na comunidade negra" e gosta dos "hotéis de Trump e dos saxofones na recepção". A "Forbes" descreveu a conversa como "quatro horas incoerentes de entrevista". Desculpe, ela não a descreveu dessa maneira — ela a promoveu dessa maneira.

Primeiro, vamos tirar os pormenores técnicos do caminho: West já perdeu o prazo de inscrição no Texas e está prestes a perdê-lo nos estados menos importantes.

Há poucos dias, ele realizou um comício de última hora na Carolina do Sul, em uma tentativa de obter 10.000 assinaturas para concorrer às urnas naquele estado. Ele perdeu o prazo para as assinaturas, mas fez notícia de outras maneiras: um discurso emocional, difícil de assistir, no qual West chora sobre impedir sua então namorada e agora esposa Kim Kardashian West de fazer um aborto. "Sabe quem mais protegeu uma criança?" West pergunta entre soluços. "Minha mãe salvou minha vida. Meu pai queria me abortar."

A coisa toda é dolorosa. Ninguém com um mínimo de juízo diria que West — gritando "Quase matei minha filha! Eu amo a minha filha!" — estava bem. Mas, como esperado, o trecho mais compartilhado do comício foi sua declaração extremamente descabida de que "Harriet Tubman nunca libertou escravos. Ela apenas fez com que eles trabalhassem para outras pessoas brancas".

E ele viralizou. Da "NBC" ao "The Washington Post", da "Billboard" ao "USA Today", veículos de notícias cobriram isso com prazer.

Há, é claro, uma história aqui: West há muito tempo é objeto de intriga, e os leitores clicariam (e clicam) para descobrir as coisas ultrajantes que celebridades ultrajantes disseram dessa vez. Mas, esse é um relacionamento que, como escreve Craig Jenkins, "precisa de reforma":

"A falta de contexto em relação ao seu diagnóstico [de transtorno bipolar]... na cobertura... que questiona a viabilidade da corrida presidencial, mas nunca considera a possibilidade de que o homem fazendo todas as citações bizarras possa não estar bem no momento, esclarece nossa incapacidade de recuar e ponderar sobre a ética da fábrica de conteúdo da internet..."

Esse é o empurra e puxa que anima a cobertura de West. Nos momentos em que assistimos a ele desmoronar em público — tuitando declarações preocupantes em vez de deletá-las, chorando sobre sua esposa não ter feito um aborto — a cobertura tem que fazer um enorme salto entre dois Kanyes: o homem que compartilha detalhes sobre sua saúde mental e está lutando publicamente e o artista singular cujas descobertas ponderadas e intencionais têm produzido álbuns brilhantes.

A coisa toda é dolorosa. Ninguém com um mínimo de juízo diria que West — gritando "Eu quase matei minha filha! Eu amo minha filha!" — estava bem.

Na quarta-feira da semana passada, Kim Kardashian West publicou uma declaração no Instagram pedindo "compaixão e empatia" por Kanye. "Ele é uma pessoa brilhante porém complicada, que além de ter que lidar com a pressão de ser um artista e um homem negro, que sofreu a dolorosa perda de sua mãe, tem que lidar com a pressão e o isolamento agravados por seu distúrbio bipolar", escreveu Kardashian West.

Nas últimas noites, West vive entre seus tuítes apagados. Ele começa a tuitar, só para apagá-los mais tarde. "Kim tentou trazer um médico para me internar", ele publicou na madrugada de segunda-feira. Na terça-feira à noite, ele compartilhou capturas de tela dele enviando mensagens para Kris Jenner, para responder, com a legenda, "Supremacia branca em seu auge, sem limites". Mas, como levamos a sério a palavra de um homem quando podemos ver o suficiente para saber que ele vai se arrepender?

Ver a maneira como falam sobre West, às vezes, é revoltante e causa confusão. Nunca tive menos certeza de que ele vai ficar bem.


Os créditos para “I Thought About Killing You”, que serve de abertura para o álbum de 2018 de Kanye West, "Ye", ostenta 11 compositores e seis produtores, incluindo o próprio West. É uma faixa perturbadora e assustadora que apresenta o rapper meditando sobre "assassinato premeditado". A perspectiva da segunda pessoa deixa você sem equilíbrio: ele está falando com um "você" externo ou é uma conversa entre a identidade e o superego em uma música sobre suicídio? “I think about killing myself/and I love myself way more than I love you, so…” ("Penso em me matar/e e me amo muito mais do que amo você, então...") Kanye recita de improviso em uma longa parte falada da canção.

Eu menciono os 11 compositores porque frequentemente ao assistir ao avanço de Ye pelo mundo, com todo o caos que ele convoca, nos esquecemos de que há toda uma economia que passa pela construção de West. Com o passar do tempo, ele cultivou a imagem do autor singular, o artista/gênio, o criador autodidata que com sucesso tornou invisível toda a engrenagem que passa pela criação de seu melhor trabalho.

Isso tem muitas consequências na maneira como avaliamos a arte de West. Pra começar, ela distorce a linha entre os pensamentos puros, não processados e a escavação pessoal e o processo criativo necessário para lidar com emoções e transformá-las em arte. "Killing You" destaca-se como um West sem filtro em um dia triste, quando é a meticulosa construção de uma cabala de compositores na sala.

A escuridão paira em "Ye", como na segunda faixa do álbum, "Yikes". “Shit could get menacing, frightening, find help” (A coisa pode ser ameaçadora, assustadora, encontrar ajuda), West canta assustadoramente em uma música desesperada sobre uma viagem ruim, e você acredita nele. A música termina em um estado elevado, com West gritando, “That’s my bipolar, nigga, what? /That’s my superpower, nigga, ain’t no disability”. ("Esse é meu bipolar /Esse é meu superpoder, não é nenhuma deficiência.") Aqui, ele faz referência a um diagnóstico do qual tem falado com frequência. Mas, "Yikes" tem ainda mais compositores creditados do que "Killing You" — 13 compositores (incluindo um crédito de compositor para Drake por um verso que foi cortado do álbum).

Onze compositores aqui, 13 ali e logo você tem um laboratório inteiro invisível cujo trabalho é a criação de Kanye West, o gênio. Mas a maior consequência de se esquecer a estrutura que passa por essa criação é que perdemos as ferramentas para distinguir entre Kanye, o criador isolado, e Kanye, a pessoa solitária e despedaçada. As duas ficaram misturadas. Então, toda vez que West fica confuso em público, ficamos envolvidos na confusão. O que pensamos do homem que processa tão claramente sua própria vida, agora dizendo coisas absurdas em público?

A verdade é que você tem que ser muito insensível para rir de uma pessoa doente na sua frente. Mas você não precisa dessa insensibilidade ao imaginar que é o West que sabe o que está fazendo, o West que é imensamente capaz de processar sua dor. Nos esquecemos do abismo entre o humano e o produto, e isso é um prejuízo para West e para nós.


Tudo que eu sei sobre a saúde mental de West e sua dor interior foi dito pelo próprio artista, uma amálgama de músicas que ele lançou desde a morte de sua mãe, Donda West, em 2007, e as entrevistas que ele tem dado.

Não sou profissional de saúde mental e não vou bancar o psicólogo de poltrona. O que eu farei será oferecer uma opinião profissional jornalística, que é que quase nenhuma das pessoas que escrevem sobre West luta devidamente com o peso de seus traumas pessoais e diagnóstico de problema mental.

West se culpa pela morte de sua mãe, que morreu depois de complicações de uma cirurgia plástica. Não preciso imaginar isso: Ele mesmo o disse em 2015, e em termos ainda mais gritantes. Um entrevistador perguntou a West o que ele teve que sacrificar pelo sucesso. "Minha mãe", West respondeu. "Se eu não tivesse me mudado para L.A., ela estaria viva."

Em 2016, cerca de nove anos após a morte de Donda, West foi internado no UCLA Medical Center depois do que foi chamado de uma "emergência psiquiátrica". O relato era que a crise foi desencadeada por West ser incapaz de deixar de se culpar pela morte de Donda. A crise veio um mês depois de West cortar um show da "Saint Pablo Tour" logo depois de descobrir que Kardashian West tinha sofrido um assalto à mão armada em Paris — enquanto ele estava no palco.

Quase nenhuma das pessoas que escrevem sobre o West luta adequadamente com o peso de seus traumas pessoais e de seu diagnóstico de saúde mental.

Aquele momento deveria ter mudado a maneira como falamos sobre West. Sua saúde mental era tão ruim que deveria ter incitado imediatamente a profunda busca interior sobre a cobertura de um homem que, a poucos meses antes de sua crise, fez um rap que diz que nós "nunca somos tão loucos quanto/Esse negro quando ele não toma seu Lexapro".

Mas tal reflexão não aconteceu. Assim, em 2018, quando West apareceu na "TMZ" para fazer seu comentário "a escravidão é uma escolha", a máquina do circo se reergueu. Venham, eles convidaram o público, ele está fazendo novamente.

A máquina de espetáculos Kanye estava inexplicavelmente ausente quando, três meses após o incidente da "TMZ", West foi à estação de rádio WGCI em Chicago e chorou. Ele chorou sobre a dor que havia causado com seu comentário e chorou sobre sua solidão. Ele chorou sobre como não tinha ninguém ao seu redor que pudesse ter impedido que isso acontecesse, ninguém que o conhecesse intimamente o suficiente para intervir. "Don C não está sempre por perto", diz West naquela entrevista, referindo-se a seu ex-gerente e padrinho de casamento. "As pessoas por perto e que estavam começando a ganhar dinheiro simplesmente não se preocupavam tanto comigo como Don C."

A entrevista na rádio de Chicago é de partir o coração para quem assiste. West falou aos entrevistadores que disse a Don, "Eu preciso dele para que merdas como essa não me aconteçam". Na conversa, West é precisamente capaz de descrever os mecanismos que levaram ao seu isolamento. Ele se contrasta com Kardashian West: "Uma coisa podemos aprender com minha esposa e a razão pela qual ela não vai parar no UCLA, é que ela tem a família com ela em todos os momentos".

Para ser claro: eu não estou desculpando o West por nenhuma de suas atitudes. Ao longo dos anos, ele tem dito algumas coisas tolas e, embora seja verdade que machucar pessoas machuca pessoas, machucar pessoas nem sempre os alinha com um presidente hostil aos interesses de seu povo ou distorce perigosamente a história ou sustenta personagens questionáveis. Esse não é o objetivo do que estou escrevendo. Mas seria igualmente desonesto fingir que West não mantém seu trauma, sua dor e seu diagnóstico na manga, ou que não deveria ter nenhuma influência na forma como a mídia o cobre. Necessitamos urgentemente de uma nova linguagem pública que reúna todos estes tópicos — uma linguagem que explique mas não desculpe, uma linguagem que contextualize mas não absolva.

Necessitamos urgentemente de uma nova linguagem pública que reúna todos esses tópicos — uma linguagem que explique mas não desculpe, uma linguagem que contextualize mas não absolva.

Os fãs do West, reconhecidamente (oi!), muitas vezes erram no lado da supercorreção. Assim, a conversa on-line sobre o artista se transforma rapidamente em uma colisão entre duas rígidas certezas morais. Há os fãs obcecados (e críticos, aliás) que acreditam que o fandom é para a vida, para o bem ou para o mal. Eles defendem Kanye, o gênio, o criador inigualável, e quando a internet vier contra ele, eles defenderão seu nome. A outra certeza é uma reação à primeira: o drama de West — e a inabalável defesa dele — é visto como exatamente o que está errado com a cultura das celebridades. Esse lado está enojado com aqueles que o defenderiam.

Ambas as certezas cometem o erro de ignorar Kanye, o ser humano, cujas próprias admissões artísticas são que ele é bipolar, isolado, que às vezes não toma seus medicamentos, e pensa que sua doença é seu "superpoder". Ambas consideram West pelo que ele diz, quando todas as evidências apontam para se ter cuidado em considerá-lo apenas pelo que ele diz.

Kardashian West, que entende-se estar furiosa com West por falar da filha deles, se vê (de novo, de novo e de novo) tendo que explicar publicamente o comportamento de West. Mas, desta vez, há uma diferença notável: é a primeira vez que ela apelou por misericórdia. Imagino que seja um pedido de misericórdia por causa das observações maliciosas e dos assuntos horríveis em alta. Misericórdia pela cobertura sem contexto. Misericórdia, talvez, em nome de uma pessoa que precisa dela mas não tem lucidez para pedi-la.

Essa misericórdia está ausente do discurso de Kanye. Quando a internet está zombando dele, ela parece estar fora de alcance. E é fácil achar erroneamente que seus fãs o defendem por misericórdia, mas não é: isso é permissividade e habilitação, uma luz verde para prosseguir por um caminho, mesmo quando parece prejudicial.

A misericórdia precisa do reconhecimento do erro e do reconhecimento das circunstâncias. É menos interessante do que aquilo que o confiante Kanye solta por aí todos os dias. Requer uma nuance para a qual as fábricas de conteúdo parecem estar mal equipadas.


Se a paixão que West inspira parece desproporcional, pode ser porque a paixão que West investiu para inspirar seu público parecia monumental em seus primeiros anos. Os negros nunca podem se esquecer do nervoso Ye, olhando de relance para as câmeras, juntando coragem para dizer, "George Bush não se importa com os negros". Naquele dia, um acordo foi selado: apoiamos você porque você nos apoia.

Daquele momento em diante, ele atingiu o tipo de patamar que os homens negros raramente atingem. E ele não parou por aí: também quis atingir os degraus disponíveis aos grandes artistas brancos. Aqueles em uma escada totalmente diferente.

A misericórdia precisa do reconhecimento do erro e do reconhecimento das circunstâncias.

Uma grande parte da carreira de West foi gasta protestando contra as limitações do que os EUA esperam dos negros. Na verdade, a missão central de West na última década pode ser vista como um protesto contra estas limitações: a briga com a Nike pelo controle criativo, sua frustração com a indústria da moda por querer confiná-lo ao estilo "urbano".

Mesmo quando West cruzou as linhas que perturbavam seus fãs negros, ele se explicou no enquadramento de alguém que o fazia pela libertação negra. Ele apoiou Trump, disse ele, em parte porque rejeitou a expectativa de que os negros devem votar pelos democratas.

Mas há um custo para descobrir que nunca se pode alcançar o sucesso que se deseja, que você nunca pode ser nada além do que um homem negro na América. "Mesmo que você esteja em uma Mercedes, ainda é um negro em um cupê", ele disse prescientemente uma vez em um rap. Quanto mais alto West subia, mais forte ficava o racismo.

um belo episódio de 2018 do "Still Processing" do "The New York Times" em que, no final, o coapresentador Wesley Morris descreve em lágrimas sua visão sobre a dor que ele imagina que Kanye está passando:

"Acho que ele realmente sente algo que sinceramente não consegue expressar sendo negro. ... Ele está mais próximo do que nunca do que ele pensa que é a liberdade. Ele sobreviveu sendo casado com as Kardashians. Ele se vinculou com esse homem branco muito poderoso. ... E sinto que ele está provando algo que é podre em sua essência. E está tendo muita dificuldade em expressar como isso o está envenenando."

Esta semana, tenho voltado muito a esse segmento. Voltei e escutei novamente depois que West publicou um vídeo de seu rancho no Wyoming (EUA) com um visitante: Dave Chappelle. Em um tuíte, Ye agradece ao gigante da comédia por "PEGAR UM JATO PARA VIR ME VER ME AJUDAR".

Aqui está Chappelle, o homem que se aproximou muito do poder e se afastou quando provou o veneno, vindo em auxílio de um homem que parece afligido pela forma como sua proximidade do poder se tornou venenosa.

West parece comovido por Chappelle ter feito a viagem para vir vê-lo. Talvez ele tenha se sentido ancorado por um amigo que fez um esforço para sentar-se com ele, animado pela visão de um homem negro que encontrou uma maneira de reivindicar o poder, mas abster-se do veneno. Talvez ele só precisasse de um amigo.

Não temos uma linguagem comum para quando uma celebridade não está indo bem em público. Não se parece com um tuíte maldoso ou um meme de merda. Com certeza não parece uma manchete sarcástica convidando você para curtir o circo de Kanye. Parece tecer compaixão e responsabilidade juntos, e dar nome ao que ele está passando juntamente com o que ele faz.

Como Kardashian West escreveu em sua declaração: "Nós, como sociedade, falamos sobre dar atenção à questão da saúde mental como um todo. No entanto, devemos também dá-la aos indivíduos que vivem com ela, no momento em que mais precisam dela". O sentimento é correto. Se soa vago e impreciso, é porque não fizemos o trabalho de expressar o que significa dar essa atenção. Já é hora de começarmos. ●

Este post foi traduzido do inglês.

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