A visibilidade trans não nos salvará

    As pessoas trans em 2019 estão mais representadas do que nunca na cultura geral — mas isso não melhorou necessariamente nossa vida cotidiana. Então, pelo que deveríamos estar lutando?

    O YouTube não é apenas uma fossa de argumentos de má-fé, teorias da conspiração e propaganda de direita. Para as 760 mil pessoas que se inscreveram no ContraPoints, ele é uma porta de entrada para um mundo de filosofia crítica.

    O ContraPoints é um canal administrado pela artista de Baltimore e autodenominada "ex-filósofa" Natalie Wynn, 31 anos, que o usa para responder às narrativas de direita que dominam a plataforma. Seus vídeos — que mergulham profundamente em tudo, desde incels a estética, com milhões de visualizações — são inteligentes e irreverentes, bem pesquisados e produzidos. Seus esforços para desacreditar a todos, desde a direita alternativa até feministas radicais antitrans, usando seu próprio estilo retórico contra eles receberam críticas brilhantes na Current Affairs, Verge, Vice e New Yorker. O Los Angeles Times a chamou de “aquela presença rara em nossos tempos clamorosos: uma voz na internet que não ressoa com raiva, mas com sátira, humor e nuance”.

    Wynn é uma figura pública atraente, e a imprensa em torno de seus vídeos fez dela uma espécie de celebridade na internet. Mas Wynn também é uma mulher trans — e, para mulheres trans, um reconhecimento mais amplo geralmente traz mais riscos, grandes e pequenos.

    No início de setembro, Wynn tuitou algumas de suas frustrações com o fenômeno de um "círculo de pronomes", quando pessoas em espaços ostensivamente transinclusivos circulam pela sala e se apresentam com seus pronomes. Wynn sugeriu que essa tentativa de acomodação poderia acabar atraindo atenção indesejada extra para as pessoas trans presentes.

    Wynn escreveu uma série de pensamentos sobre quem se beneficia com essas apresentações e com a visibilidade em geral. Ela tuitou (e depois apagou) a frustração com "os radicais" e sua fixação pela "nova visibilidade"; ela seguiu com outro tuíte, agora apagado: "Sou amiga de muitas pessoas trans da Geração Z, e costumo me juntar a elas porque fico muito online e fiz a transição há pouco tempo. Mas a minha experiência é muito diferente. Não sou uma transexual de vanguarda. Às vezes, eu me sinto como a última das transexuais das antigas."

    Esse desastre levou Wynn a desativar temporariamente sua conta no Twitter (ela o reativou cerca de duas semanas depois, brincando: "Se eu tuitar algo parecido com uma opinião, por favor, me castigue severamente"). Nos dias e semanas seguintes, a sombra do incidente só aumentou.

    Durante aquela tempestade de tuítes inicial, Wynn argumentou que coisas como círculos de pronomes e o avanço em direção a uma linguagem mais neutra em termos de gênero em geral "ocorrem às custas de transexuais que aparentam ter nascido com o gênero ao qual se referem como eu" — evidência que mais tarde foi usada em tópicos do Reddit, tempestades de tuítes, vídeos explicativos independentes do YouTube, postagens de blogs e artigos críticos para indicar que Wynn supostamente odeia pessoas não binárias, ou que seu “cancelamento” era um sintoma de um problema maior nos negócios confusos da inclusão trans. Algumas das pessoas que comentaram usaram o incidente para difamar “ativistas transgêneros” por sua sensibilidade excessiva. Desde que seu último vídeo contou com Buck Angel, um homem trans que se popularizou por implicar que a visibilidade de “transgêneros” é uma ameaça política para transexuais legítimos como ele, os debates sobre Wynn e sua política aumentaram ainda mais.

    Durante a primeira semana de novembro, Wynn se afastou do Twitter pela segunda vez em três meses, aparentemente para sempre, deixando uma nota final declarando seu amor e apoio a pessoas não binárias.

    Seria fácil classificar o caso do ContraPoints como um exemplo de "ataque nas mídias sociais" que foi longe demais — um sintoma do déficit de empatia e apetite por sangue da esquerda radical enlouquecida. Seria igualmente fácil argumentar que Wynn conseguiu o que merecia, e celebrar a rapidez jurídica da internet em responder ao que poderia ser interpretado como uma espécie de discurso de ódio.

    Mas ambas as interpretações falham em capturar o que é único e convincente sobre esse escândalo, que é emblemático de tensões maiores e visões políticas contraditórias nas discussões públicas sobre a vida trans hoje em dia — desde estudos sobre homossexuais e trans na academia, à cobertura dos direitos trans na imprensa geral, aos debates diários entre pessoas homossexuais e trans nas mídias sociais.

    "Por um lado, sabemos intelectualmente que 'trans' não implica necessariamente uma política, porque uma pessoa trans é apenas uma pessoa", a escritora e crítica Andrea Long Chu me disse por telefone em setembro. "Mas há claramente um significado político na própria capacidade de falar da condição trans. Portanto, há uma tensão inerente." Para Chu, 27, o debate do ContraPoints e a profecia autorrealizável de Wynn de uma divisão geracional na comunidade trans apontaram para as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos querem se sentir como se pertencessem sob o frágil guarda-chuva trans.

    Acho que para muitas pessoas — incluindo aquelas que Wynn pode ter imaginado com a frase “transexual de vanguarda” —, a identidade trans realmente significa algo político. Em algum nível, seria ridículo supor o contrário: até ser capaz de se descrever como trans de maneira pública requer um tipo de consciência política. Nossa existência, diz o ditado, é resistência. Mas a nossa existência é realmente resistência por si só?

    As pessoas trans em 2019 estão incrivelmente visíveis: identidades não binárias e estética andrógina têm ganhado apelo popular; influenciadores e celebridades têm colocado nossas ideias e deficiências no cenário internacional; novos argumentos têm aberto feridas antigas nas páginas de jornais célebres e jornalecos de direita; e brigas por identidade e expressão têm chegado aos mais altos órgãos do governo. Contra um cenário de assassinatos múltiplos e altamente divulgados de mulheres trans negras e pardas, a identidade trans tem sido objeto de especiais de comédia, artigos de opinião, audiências públicas, casos legais e decisões da Suprema Corte dos EUA — ao ponto de que perguntas sobre o que “significa” ser trans são subitamente inescapáveis. Este tem sido um ano de contradições surpreendentes: um em que as divisões sob o guarda-chuva frágil que chamamos de “comunidade trans” cresceram cada vez mais e as apostas parecem impossivelmente altas.

    A visibilidade e a representatividade podem ser profundamente afirmativas para os marginalizados pelo convencional. Mas uma política de identidade e seu reconhecimento passou a ofuscar as maneiras pelas quais o reconhecimento traz consequências únicas para algumas pessoas trans e não para outras. O incidente do ContraPoints é um exemplo de como as narrativas da vida trans geralmente falham em explicar os fatores complicadores de raça e classe. E, como consequência, todo o conjunto do discurso trans — principalmente na internet — exige uma reconsideração crítica.

    Nossa existência, diz o ditado, é resistência. Mas a nossa existência é realmente resistência por si só?

    Cinco anos se passaram desde a aparição de Laverne Cox na capa da revista Time, anunciando a era do chamado "ponto de inflexão transgênero". Desde então, a política de identidade e visibilidade trans levou a mais campanhas publicitárias #genderfluid e ganhos individuais para algumas poucas pessoas agora famosas — esforços que às vezes ajudam as pessoas comuns a se sentirem menos sozinhas, além de incentivarem pessoas cis a entenderem melhor a identidade trans e a humanidade. Mas, embora a representatividade trans na mídia esteja no nível mais alto de todos os tempos, a maioria das pessoas trans ainda vive em condições precárias e profundamente desiguais. Mais urgentemente, mulheres trans negras e pardas estão morrendo em número recorde, e muitas outras estão sofrendo nas ruas. O ano está quase no fim; em 2020, vale a pena nos perguntarmos o que deve vir depois. Se o reconhecimento não pode nos trazer revolução, pelo que devemos lutar?

    “Transexualidade”, escreveu a estudiosa feminista Viviane Namaste em 2001, “trata-se da banalidade de comprar pão, de fazer fotocópias, de ter seu sapato consertado. Não se trata de desafiar o sistema de gênero/sexo binário, não se trata de fazer uma intervenção crítica a cada segundo do dia, não se trata de iniciar a Revolução de Gênero. Teóricos homossexuais, bem como teóricos transgêneros, como [Leslie] Feinberg e [Jack] Halberstam, simplesmente não entendem isso."

    Para Namaste, que dedicou sua vida profissional à melhoria da prisão canadense e dos sistemas de saúde para pessoas trans, não havia nada de excepcional ou mesmo muito interessante em ser trans. Não queríamos ser visíveis, políticos, radicais ou revolucionários — simplesmente tivemos que ser essas coisas, embora apenas como resultado de discriminação.

    Não sei como me sinto sobre o argumento completo de Namaste; certamente Leslie Feinberg, uma comunista revolucionária cujo ativismo e escrita política e histórica exigiram que os leitores reconhecessem a personalidade trans e apoiassem a solidariedade da classe trabalhadora, "entendeu". Ainda assim, o argumento de Namaste é interessante de se considerar, pelo menos porque seu enquadramento soa estranhamente familiar à dicotomia de Wynn entre o "transexual de vanguarda" e o "transexual das antigas". Desde que a identidade trans tem existido no convencional, tem havido tensões entre aqueles que simplesmente se esforçam para viver vidas normais e aqueles que imaginaram a experiência transexual como um projeto político — algo que terá sucesso ou fracassará na busca pela libertação homossexual e revolução de gênero.

    Sempre tem havido tensões entre aqueles que simplesmente se esforçam para viver vidas normais e aqueles que imaginaram a experiência transexual como um projeto político.

    Comecei a me identificar como trans em 2015, no mesmo ano em que a Suprema Corte dos EUA legalizou o casamento de pessoas do mesmo sexo em nível nacional — uma época em que uma crescente "visibilidade trans" começava a ser comemorada no convencional por sua aparente capacidade de melhorar a vida cotidiana das pessoas trans. Após o "ponto de inflexão transgênero" em 2014, pessoas trans sensacionais e a estética tornaram-se populares, ganhando artigos e comerciais de vídeo em veículos como Mic, NowThis, Bustle e outras publicações online pró-LGBTI+ e suas empresas de produção de vídeos curtos (prefigurando os lançamentos de 2017 de Into e Them). Em 2016, não era incomum ouvir as pessoas falarem sobre "abolir o gênero" ou "quebrar o binário", mesmo que tudo o que elas realmente fizessem fosse passar batom. Mas esses eram os últimos anos de Obama, quando era fácil vender a ideia de representatividade como uma cura para todos os males sociais. Ser diferente era emocionante; ao lado de meus companheiros gays privilegiados, eu engoli tudo.

    Então, em 2016, no mesmo campus em que eu havia acabado de me formar, Jordan Peterson, professor de psicologia e intelectual de direita, declarou sua guerra cultural à identidade não binária, alegando que a "ideologia da identidade de gênero" derrubaria a civilização ocidental. Nesse mesmo ano, Milo Yiannopoulos começou seu Dangerous Fagot Tour, perseguindo mulheres trans em vários campi nos EUA.. Conservadores culturais começaram a confundir a identidade trans com um ataque stalinista à “liberdade de expressão” e aos “valores tradicionais”. Era uma ligação ontológica estranha: não existíamos, mas de alguma forma representávamos uma ameaça existencial.

    Muitas pessoas trans e nossos aliados reagiram à propaganda da direita dobrando o potencial radical da visibilidade trans, usando-a como base de uma política geral de resistência. Ser trans significava violar as regras que a sociedade criou em torno de homens, mulheres, sexo e personificação. Éramos a evidência de que o sistema estava quebrado, então por que não esmagá-lo totalmente e criar algo novo? Outros, no entanto, estavam mais preocupados em provar nossa disponibilidade para sermos bons cidadãos e sujeitos passíveis de governação: sim, existem pessoas trans, mas não queremos lhe fazer mal.

    Uma hashtag viral, #WeJustNeedToPee, sugeria que não estávamos tentando reescrever as regras da sociedade. Estávamos apenas tentando ir ao banheiro, à escola, ao trabalho ou ao supermercado — o que Namaste chama de "banalidade" da vida cotidiana. Essas campanhas geralmente mostravam pessoas trans normativamente masculinas ou femininas, fotos virais de homens trans corpulentos, perguntando sarcasticamente se eles pertenciam ao banheiro feminino.

    Mas, no final, as pessoas antitrans realmente não se importam se as mulheres trans que elas atacam e criminalizam podem desempenhar a feminilidade melhor do que as mulheres cis. Na verdade, muitos transmisoginistas afirmam que mulheres trans são antimulher precisamente por tentarem se conformar com as expectativas sexistas impostas a elas. Não havia como vencer o patriarcado e o cissexismo — a perspectiva normativa que percebe as pessoas trans como anormais e aberrantes — tentando jogar de acordo com suas próprias regras. Estávamos tendo a conversa errada.


    É compreensível que algumas pessoas trans desejem elevar a promessa de visibilidade, tudo na esperança de que isso se traduza em maior liberdade para todas as pessoas trans. Quando mais uma feminista radical excludente de trans (ou "TERF") odiosa está espalhando um absurdo sem sentido sobre pessoas trans que se atrevem a praticar esportes, ou quando opiniões "críticas de gênero" aparecem como histórias de capa ou em um grande jornal, é tentador responder com fotos de crianças trans de aparência inocente ou pedidos pessoais de reconhecimento. A esperança é que, normalizando a nós mesmos — e sendo visíveis em nossa normalidade —, possamos compensar as barreiras que mantêm as pessoas trans à margem da sociedade.

    Os tipos de círculos de pronomes que deixam Natalie Wynn desconfortável, bem como ações mais sutis, como pronomes nas biografias do Twitter ou assinaturas de e-mail, são tentativas sinceras de tornar as pessoas trans mais visíveis e, portanto, com sorte, mais aceitas. Mas eu me preocupo com o fato de termos enfatizado demais a importância e o valor político da visibilidade, na medida em que alguns de nós presumem que essa é a única ferramenta com a qual temos que trabalhar — ou o único objetivo que vale a pena buscar. Entre os artistas extremamente conectados e relativamente ricos — como artistas trans brancos com credenciais acadêmicas, ativistas online com famílias ricas e aliados cisgêneros celebrados em jantares de gala sem fins lucrativos —, a linguagem e a plataforma de visibilidade são invocadas erroneamente como solução para a violência enfrentada por todos sob o guarda-chuva trans.

    Minha amiga Edgar Nuñez, 26 anos, é uma artista não binária que mora em San Diego. Ela me disse durante uma conversa recente que discussões públicas sobre "visibilidade" e reconhecimento trans são frequentemente um atalho para passar — a capacidade de ser percebida como sendo de um gênero, que geralmente é baseada nos níveis de privilégio socioeconômico e racial. Na opinião dela, comentários como o de Wynn sobre a geração Z trans hipervisível dão como certa a brancura de seus súditos.

    Ao sugerir que o desejo de pessoas não binárias de que seus sexos sejam reconhecidos e afirmados é antagônico aos objetivos das pessoas trans binárias que desejam "passar", Wynn inadvertidamente demonstrou o principal problema com muito do discurso de "visibilidade". Enquanto ela e outros "transexuais das antigas" (Wynn tem apenas 31 anos) se esforçam para se passarem como os gêneros que são, a própria possibilidade dessa "passagem" está ligada a questões de raça e classe. De muitas formas, a transfobia é um subproduto do racismo social: o gênero é racializado e, consequentemente, policiado; as lógicas raciais tornam certas pessoas trans mais visíveis — e perigosamente — do que outras.

    Assim, para pessoas trans negras e pardas, a visibilidade nem sempre é uma meta. Mais frequentemente, como observou a artista Martine Syms, "representatividade é uma forma de vigilância": visibilidade não se traduz em aceitação, mas em maior atenção, escrutínio e restrição. "Para pessoas negras e pardas, o estado já está geralmente disposto a nos pegar", disse Nuñez. “Nós já temos muita atenção em nós. Ninguém está tentando ser visível, pelo menos não da maneira que [Wynn] imagina. A classe tem tudo a ver com isso. Confundir ser não binário com uma apresentação hipervisível específica é muito limitado.”

    Nuñez me diz que, quando está em público, é mais provável que receba atenção indesejada de estranhos do que, por exemplo, uma mulher trans branca que é capaz de se passar como cisgênera na maioria das vezes. Sua visibilidade é completamente indesejável; seja esse estranho um policial, um senhorio ou uma pessoa branca particularmente agressiva, é mais provável que ele veja Nuñez como (em suas palavras) "uma coisa perigosa, criminosa e parda", em vez de um modelo de personalidade transgênera radical.

    "Para pessoas negras e pardas, o estado já está geralmente disposto a nos pegar... Nós já temos muita atenção em nós. Ninguém está tentando ser visível."

    As contradições entre esses dois tipos muito diferentes de visibilidade se tornaram aparentes na mesma semana em que pessoas trans surgiram reagindo aos tuítes iniciais de Wynn. Enquanto todos discutiam sobre o ContraPoints, uma garota trans negra de 17 anos chamada Bailey Reeves acabara de ser baleada e morta em Baltimore, a mesma cidade em que Wynn mora. Apesar da gravidade desse evento — sua publicidade, sua violência e sua dolorosa semelhança com o número devastadoramente alto de outros assassinatos de mulheres e garotas trans negras este ano —, a morte de Reeves pareceu causar muito menos rebuliço na internet trans do que a discussão sobre o ContraPoints. E isso, por si só, é revelador. Enquanto um evento continuou debates de longa data sobre as melhores formas de apresentar a identidade trans, o outro marcou mais um exemplo em um longo padrão de mortes de negros e a forma como essas mortes são muitas vezes ofuscadas pelas preocupações com o conforto dos brancos.

    Todas as pessoas trans sofrem devido ao cissexismo. Todos os incidentes de referência de gênero errada e assédio são assustadores. Ainda assim, quando analisamos as condições de pobreza, precariedade e excesso de policiamento nas quais a maioria das pessoas trans vive e morre, tipos diferentes de padrões começam a surgir. Reeves era uma jovem negra de uma das cidades mais segregadas dos EUA, onde a polícia atirou e matou pelo menos quatro negros só neste ano. A visibilidade e o reconhecimento trans dispararam, mas mulheres negras e pardas ainda estão morrendo. Não parece que uma política de visibilidade possa realmente salvar os mais vulneráveis entre nós.

    Acabar com essa epidemia pode exigir algo diferente de um anúncio do Instagram pró-trans de uma marca, um contrato de publicação de livro de outra microcelebridade trans das mídias sociais superexposta ou uma sessão de inclusão no local de trabalho após um caso de referência de genêro errada no escritório — ou, aliás, o #cancelamento alguém como Natalie Wynn por seus comentários deselegantes sobre pessoas não binárias. Parece que toda a visibilidade no mundo não vai mudar a forma como alguns corpos são valorizados em detrimento de outros. Então, como isso pode ser algo diferente?


    "Na época do 'ponto de inflexão trans', houve empolgação com a ideia de a própria identidade ser uma ruptura", disse recentemente Alyson Escalante, 27 anos, por telefone. Escalante é uma mulher trans chicana e apresentadora do podcast Red Menace. Em 2016, seu ensaio Niilismo de gênero: um antimanifesto esteve entre os textos online mais lidos e citados sobre as contradições dessa era de ouro da política de representatividade.

    "Na época, meu pensamento era que a identidade não pode ser radical e, portanto, deve ser destruída", disse Escalante. "Desde então, minha organização está mais interessada em abordar a questão da classe — as reais condições em que as pessoas trans proletárias vivem."

    Mas qual é a utilidade de roupas neutras quanto ao gênero sem dinheiro para comprá-las? Por que se preocupar se o dono do apartamento respeita seus pronomes se você não pode pagar o aluguel?

    Ela tem razão. Estatisticamente, a maioria das pessoas trans trabalha em empregos precários em condições de merda. Muitas mulheres trans estão envolvidas em trabalho sexual, o que significa que muitas vezes são criminalizadas e têm negadas qualquer tipo de proteção no local de trabalho, sem falar nos benefícios básicos de saúde. Até mesmo estatísticas deprimentes, como o fato de 78% dos americanos transgêneros terem sofrido assédio contra trans no local de trabalho, ainda presumem que a maioria das pessoas trans trabalha em ambientes formais de trabalho. Na verdade, estudos nos EUA indicam que o nível de desemprego entre pessoas trans é duas vezes maior que a média nacional; entre os empregados, 44% conseguiram apenas trabalho temporário, em regime de meio período ou com salário baixo. Quando uma mulher trans chamada Alloura Wells desapareceu em Toronto em 2017, a polícia disse à família dela que, como ela era sem-teto, ela não era "uma prioridade". Em um estudo de 2015 do National Center for Transgender Equality, apenas 13% dos entrevistados estavam empregados formalmente no ano passado. De acordo com a mesma pesquisa, 29% das pessoas trans foram encontradas vivendo na pobreza (aproximadamente o dobro da média nacional), com as pessoas trans negras sendo as mais atingidas. Mais de 40% das pessoas trans negras nos EUA ficaram desabrigadas em algum momento.

    Esses números são desoladores, mas mostram uma imagem precisa da vida da maioria das pessoas trans, especialmente as não-brancas. Suas preocupações mais urgentes não são reconhecimento e acomodação, mas os tipos de questões que afetam os trabalhadores em geral — a ameaça de aumento de custos, salários baixos, inflação de dívidas, empregos de merda e funcionários públicos que abertamente não se importam se pessoas trans vivem ou morrem.

    Claro, o reconhecimento e a acomodação individualizados podem ser úteis, até transformadores, para algumas pessoas trans. Mas qual é a utilidade de roupas neutras quanto ao gênero sem dinheiro para comprá-las? Por que se preocupar se o proprietário do apartamento respeita seus pronomes se você não pode pagar o aluguel? A verdade é que combater a injustiça sistêmica com reconhecimento individual é como levar uma faca em um tiroteio. Se o experimento do multiculturalismo neoliberal nos ensinou alguma coisa, é que a discriminação institucional é incrivelmente resistente quando confrontada com a política de maior visibilidade. O Canadá aprovou a Lei do Multiculturalismo Canadense em 1988 — no entanto, em 2014, o governo deportou uma média de 35 pessoas por dia. Para Escalante, a controvérsia em torno do ContraPoints "na verdade ilustra por que a organização é importante". "Porque as políticas adotadas por Wynn, e aquelas que ela critica, não abordam a questão da classe."

    Enquanto conversávamos, pensei em Layleen Polanco Xtravaganza, uma trans negra latina que morreu em junho em regime de isolamento em Rikers Island. Ela foi mantida lá sob fiança de US$ 500 relacionada a uma contravenção relacionada a prostituição e uma acusação leve de porte de drogas. Todas essas circunstâncias — encarceramento em massa de pessoas negras, policiamento do trabalho sexual, regime de isolamento, fiança em dinheiro e guerra às drogas — são produtos de políticas destinadas a restringirem a vida dos negros e a criminalizarem a pobreza.

    De acordo com Ngaire Philip, uma mulher trans negra e consultora de financiamentos, o incidente do ContraPoints e sua proximidade com a morte de Bailey Reeves demonstram como os debates sobre visibilidade e identidade podem realmente obscurecer as difíceis realidades que afetam as mulheres trans — mulheres trans negras, especificamente — como uma classe.

    Ngaire, 26 anos, mora em Baltimore, onde Wynn vive e onde Reeves foi morta. Elas trabalham com a Baltimore Safe Haven, uma organização popular que fornece abrigo, suprimentos de saúde e aconselhamento necessários para pessoas que estão no "modo de sobrevivência" — dormindo nas ruas, lidando com vícios e fazendo trabalho sexual para sobreviver. "As pessoas passam por desabrigados nas ruas o tempo todo e fingem que eles não estão lá", me disse por telefone. "E muitas dessas pessoas são negras e trans."

    Ngaire acrescentou: "Penso que, quando nos concentramos muito nas minúcias de identidade, nos perdemos no tempero. Acabamos passando pelas pessoas que realmente mais precisam da nossa ajuda, e tentamos nos fixar em nossos menores desejos e anseios. E é normal ter esses desejos, mas não podemos simplesmente passar por aqueles que estão em extrema necessidade."

    Grande parte do discurso trans — as discussões sobre representatividade e inclusão trans que ocorrem na mídia — acaba refletindo as divisões de classe e raça dentro dessa assembleia dispersa da “comunidade trans”. Focar na identidade, na visibilidade e no reconhecimento pode arriscar a reprodução de uma imagem muito estrita do que a vida trans significa em nível político. Isso, por sua vez, dá permissão aos líderes políticos e culturais de evitarem mudanças políticas importantes por gestos representacionais. Com a bênção de influenciadores, grupos de interesse e empresas com consciência de imagem, leitores e espectadores entendem a inclusão trans como algo alcançado por endossos de marcas, personagens de televisão trans e políticas corporativas neutras em relação a gênero, em vez de habitações acessíveis e reforma dos cuidados de saúde.

    Em nível humano e individual, os produtos da visibilidade são valiosos: ver mais personagens trans na mídia fornece referências comuns a crianças trans e seus pais, e medidas antidiscriminação garantem que as equipes de relações humanas estejam preparadas para oferecer suporte aos funcionários trans. No entanto, essas soluções individualizadas e focadas em identidade não fazem nada para abordar amplamente os componentes econômicos, raciais e políticos da marginalização trans. A identidade trans é altamente politizada, mas ela própria não é um tipo de visão ou programa político. Nossas identidades podem nos ajudar a reconhecer a necessidade de revolução, mas elas não são uma revolução em si mesmas.


    “Nós, como comunidade, estamos familiarizados com um conjunto de narrativas transexuais que agora são consideradas boatos totais ou narrativas estratégicas criadas para o benefício de pessoas cis — o 'nascido assim' ou o 'corpo errado' seriam um deles”, me disse Andrea Long Chu. “Mas o fato é que a identidade não binária também tem acesso a narrativas igualmente vazadas. E isso porque pessoas não binárias, sendo seres humanos completos, podem, como todos nós, acreditar em muita merda.”

    Uma garota que pensa como eu, Chu tem uma propensão a uma escrita contundente que desafia seu público e inverte suas expectativas, o que a tornou uma figura proeminente e um tanto controversa no ano passado. No final de 2018, ela escreveu sobre sua iminente vaginoplastia no New York Times, defendendo uma mudança no pensamento sobre cirurgias trans: em vez de enquadrar as operações como uma maneira de mitigar o "risco", deveríamos reconhecê-las como oportunidades de autonomia corporal, a realização de um desejo que deveria valer por si só. "O único pré-requisito da cirurgia deveria ser uma simples demonstração de desejo", escreveu Chu. "Além disso, nenhuma quantidade de dor, prevista ou continuada, justifica sua negação."

    Houve muito o que apreciar no ensaio de Chu. Mas algumas mulheres trans ficaram profundamente desconfortáveis com a forma como ela descreveu seu corpo (referindo-se à vagina como uma "ferida") e, por extensão, os corpos de outras mulheres trans. Kai Cheng Thom argumentou em um ensaio para o Slate que as escritas de Chu “analisam alguns estereótipos infelizes de como as pessoas falam e escrevem sobre pessoas trans” e “generalizam a transição de uma maneira que é prejudicial para as pessoas trans no pós-operatório e potencialmente prejudicial para aqueles que consideram a transição”. Basicamente, argumentou Thom, mesmo quando Chu pretendia subverter a narrativa de transição como uma intervenção médica de emergência, seu artigo reforçava outras narrativas igualmente insidiosas.

    Reler a obra de Chu e a resposta de Thom a ela me lembrou um argumento levantado pela poetisa e ativista Gwen Benaway em seu ensaio “Pussy - Being a trans girl”, no qual ela escreveu: "Muitas vezes significa que grande parte do mundo a odeia ativamente e tentará desumanizá-la a cada encontro. Você é forçada, literalmente, a prestar contas perfeitas de si mesmo para acessar instituições e participar da vida pública". Quando nos deparamos com esse ambiente, não é de admirar que muitos de nós confiem em certas narrativas testadas e comprovadas para dar conta de algo tão frágil e sem correção quanto o gênero.

    Mas as narrativas sobre pessoas trans, e as mulheres trans em particular, têm um poder próprio. As consequências do ensaio de Chu demonstram como a nossa capacidade, como pessoas trans, de falar com e sobre nossos próprios corpos e experiências envolve navegar preconceitos e ideias culturais pré-existentes; quando você pensa que escapou de um, outro aparece em seu lugar. Algumas pessoas trans têm encontrado um tipo de poder em se definirem em oposição a essas ideias. Mas essa oposição é frequentemente uma oposição sem poder. Para parafrasear o jornalista Harron Walker, a maioria dos discursos sobre identidade trans promete uma rebelião “sem nunca tentar pegar o primeiro tijolo”. E assim as narrativas preocupantes sobre pessoas trans produzidas por porteiros médicos, políticos, especialistas e profissionais de marketing cisgêneros permanecem imperturbáveis.

    O caso do ContraPoints não pode realmente nos fornecer uma grande teoria da transexualidade hoje. No entanto, vale a pena pensar no argumento de Benaway e em como as narrativas costumam ter uma vida muito maior do que os eventos que descrevem.

    O problema real do cissexismo está ausente tanto nas queixas de Wynn sobre sua própria hipervisibilidade quanto na caracterização de mulheres trans por seus críticos como antagônicas a pessoas não binárias. É o cissexismo que nos torna visíveis, queiramos ou não, que nos castiga por nossas transgressões de gênero e insiste em que nunca possamos realmente ser reais o bastante. No entanto, na polêmica do ContraPoints, o cissexismo e as pessoas cisgêneras permaneceram despercebidas, sem contestação e contornadas — contabilizadas sem nunca terem que prestar contas de si mesmas.

    O fato de o episódio do ContraPoints ter entrado em um debate tão significativo, sem dúvida às custas de mais cobertura e discussão da morte de Bailey Reeves e dos muitos fatores sociais, econômicos e culturais que o produziram, deve nos dizer algo sobre as prioridades de um discurso trans preocupado principalmente com visibilidade e reconhecimento. Ele também fala dos limites de se apresentar para um público cisgênero — um recurso dos vídeos do ContraPoints e do discurso de visibilidade em geral —, que sempre ocorre dentro dos limites definidos de qualquer pessoa que tenha o dinheiro e a boa vontade de entretê-lo. "Como em todas as apresentações, o público e suas expectativas são a verdadeira história", escreveu Benaway. E, portanto, eu argumentaria que as pessoas trans não são os benfeitores máximos desse discurso; somos simplesmente suas ferramentas retóricas.

    É o cissexismo que nos torna visíveis, queiramos ou não, que nos castiga por nossas transgressões de gênero e insiste em que nunca possamos realmente ser reais o bastante.

    Pode haver algo catártico em criticar outras pessoas trans — em sacudir esse guarda-chuva já frágil, em agir com o ressentimento que carregamos por aqueles que são visíveis ou não visíveis o suficiente, que passam ou que não parecem querer passar. Talvez eu seja culpada de fazer exatamente isso aqui — levando minhas queixas particulares para um espaço público, arrastando meus irmãos trans pela lama, tecendo meu próprio tipo de narrativa; talvez eu tenha me envolvido no mesmo problema que estou tentando analisar. A escolha de viver plena e publicamente como uma pessoa trans me custou empregos, relacionamentos e conexões, mesmo entre as pessoas cis mais esclarecidas, todas as quais reconheceram minha mudança de rosto e corpo como sinais de problemas futuros. No entanto, a visibilidade ainda funcionou amplamente a meu favor. Afinal de contas, apoiei meu portfólio na onda da política de identidade trans (pelo menos até a mídia canadense se virar ao máximo para me pegar). E eu só posso fazer essa crítica da visibilidade e da representatividade individual porque a brancura abre portas para mim que, de outra forma, permaneceriam seguramente fechadas. Se meu diagnóstico estiver correto, sou um sintoma do mesmo problema que minha receita procura solucionar. Mas acredito que os privilegiados entre nós deveriam estar mais dispostos a se comprometerem com um programa político que nos prive de nossos privilégios não adquiridos. Se essa visão específica para a política trans vai funcionar, é necessário que aqueles de nós com plataformas e poder juntem argumentos em favor de nossa própria ruína.

    Quaisquer que sejam as nossas apostas individuais nessa conversa, quando olharmos para as condições reais em que as pessoas trans vivem ou morrem como uma classe, qualquer debate sobre identidade trans limitado a questões de visibilidade e experiência individual sempre será totalmente inadequado. Embora o ContraPoints, por sua vez, seja vítima dessa matriz de identidade e visibilidade superenfatizada, ele também é uma perpetradora dela.

    Falar sobre identidade trans já imagina nossa mera existência como política, e promover a “visibilidade” como a chave para nossa salvação já falhou em salvar muitos de nós. Em vez de endossar o individualismo burguês simbolizado no discurso da visibilidade, deveríamos estar trabalhando rumo a uma visão política e um programa de solidariedade de classe e raça, fundamentado em ações coletivas, greve, sabotagem, protesto e mobilização em massa.

    O problema não é que a identidade trans não seja política, mas que o discurso da visibilidade limita nossa capacidade de falar em voz alta sua verdadeira visão e programa político: abolição da prisão, moradia a preços acessíveis, assistência médica acessível, trabalho confiável, autonomia corporal e redistribuição radical da riqueza — de cada um de acordo com sua capacidade, de cada um de acordo com sua necessidade. Uma visão política não de reconhecimento, mas de revolução. ●

    Este post foi traduzido do inglês.

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