Como “Esquadrão Suicida” usa e abusa de Harley Quinn

E, pra falar a verdade, da maioria das personagens mulheres.

Clay Enos / Warner Bros

Adewale Akinnuoye-Agbaje e Margot Robbie em "Esquadrão Suicida".

Falar de "Esquadrão Suicida" é falar de Harley Quinn.

Com seu estilo de arlequim, a namorada e companheira de crime do Coringa é uma favorita do público e uma das protagonistas do novo filme da DC Comics. Como a maioria dos personagens principais de "Esquadrão Suicida", vilões recrutados com uma combinação de coerção e suborno para trabalhar para as forças nominalmente do bem, Quinn é uma personagem de HQ de segunda linha – nessa turma não tem Super Homem (embora ele seja mencionado) nem Batman (embora ele faça uma pequena ponta, interpretado por Ben Affleck).

Harley é psiquiatra e se apaixonou pelo Coringa (Jared Leto) quando tratava dele no Asilo Arkham. Ela deixou tudo para trás para acompanhá-lo, numa mistura de paixão louca ou síndrome de Estocolmo. Faz observações insolentes, como “Que rolê!” depois de sobreviver a um acidente de helicóptero, para que ninguém esqueça da sua visão de mundo demente. A atriz que a interpreta, Margot Robbie, não é o nome de maior destaque do elenco – Will Smith faz o papel do Pistoleiro –, mas ela aparece em primeiro plano em todos os materiais de marketing do filme. Talvez porque ela pareça tão única com esse visual de cheerleader maluca. Ou talvez porque esteja de shortinho.

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Clay Enos / Warner Bros.

Joel Kinnaman e Will Smith em Esquadrão Suicida.

Harley Quinn personifica todos os elementos conflitantes de um filme francamente desastroso, escrito e dirigido por David Ayer.

Com aquele jeito malucão, ela deveria ser engraçada, mas também está em um relacionamento abusivo que o filme simplesmente não sabe como abordar. Ela deveria ser forte – e literalmente destrói um monte de coisas com um taco de beisebol. Mas ela também é, psicologicamente, uma prisioneira que abriu mão do seu senso de si mesma. É uma ícone gótica que fala como a mulher de um gângster dos anos 1930 e que tem uma arma com “amor” e “ódio” escrito no tambor. No entanto, lá no fundo, ela quer ser uma dona de casa de bobs, cuidando das crianças enquanto seu marido de cabelo verde sai para trabalhar. Ela é anárquica, mas não muito, e divertida, mas não muito, e toda errada, mas não muito – pelo menos não de maneira que o filme tenha tempo para explorar.

É verdade que Harley é uma personagem complicada, mas ela foi transformada num mascote sexualizado por um filme que quer ser uma lâmina cortante, mas que não consegue ir além das curvas da protagonista.

"Esquadrão Suicida" e seus criminosos e depravados adorariam frustrar as expectativas que rondam os filmes de super-herói, mas o resultado é um retrocesso retumbante. Os personagens teoricamente são marginais durões e egoístas, mas ao mesmo tempo se declaram uma “família” mais rápido que um bando de meninas pré-adolescentes no acampamento de férias.

A trama circular é de enlouquecer: o Esquadrão Suicida é ativado para combater uma antagonista com cara de boba que nem sequer existiria se não tivessem formado o Esquadrão Suicida. Ela, no caso, é Amanda Waller, uma agente do governo ambígua intepretada por Viola Davis. (O melhor momento de Davis é quando ela se deleita comendo e ao mesmo tempo explicando um dossiê sobre os criminosos que ela pretende prender, como se ela pudesse devorar seus chefes irritantes.) Mas nem mesmo Davis pode superar o fato de que o filme todo gira em torno das péssimas ideias de Waller e como elas podem levar à destruição de grande parte de Midway City.

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Clay Enos / Warner Bros.

Viola Davis em Esquadrão Suicida.

As personagens mulheres de "Esquadrão Suicida" não são muito melhores que Waller. Elas não conseguem se controlar e estão sempre arrastando homens para cima e para baixo (com exceção do Capitão Bumerangue, interpretado por Jai Courtney, e do Crocodilo, Adewale Akinnuoye-Agbaje, que, se tivessem alguma consistência no roteiro, andariam metade do caminho). Cara Delevigne é a arqueóloga June Moone, tão risível quanto Magia, a bruxa que a possui – sem contar o incipiente talento artístico da modelo. Magia tem mais superpoderes que todos os outros personagens, mas June acaba sendo uma mera peça no tabuleiro, manipulada pelo espírito e também por Waller, que se aproveita dela para manter o recruta Rick Flag (Joel Kinnaman), amante de June, sob seu controle.

Temos Katana (Karen Fukuhara), uma espadachim sanguessuga de almas que, com seu aliado Flag, tem sede de vingança. Depois de passar a maior parte do filme deixando que Flag fale por ela, descobrimos que Katana também sabe inglês. Temos a mulher e os filhos que El Diablo (Jay Hernandez) mata com suas bolas de fogo e depois se arrepende. Temos a preciosa filha do Pistoleiro, cuja morte ele quer vingar. (A performance mordaz de Smith indica o tom que o filme quis alcançar, mas não conseguiu.)

Como diretor, Ayer é conhecido por fazer filmes enérgicos sobre homens – alguns muito bons, como "Corações de Ferro", um drama sobre a Segunda Guerra Mundial, e "Marcados para Morrer". Por que colocá-lo no comando de um filme que tem metade dos personagens mulheres e que, como prometiam todos os trailers, seria mais leve e mais divertido que o recente "Batman vs Superman: A Origem da Justiça"?

A primeira metade de "Esquadrão Suicida" se passa quase totalmente ao som de música, como “Sympathy for the Devil”, “Seven Nation Army” e “Spirit in the Sky”, numa tentativa clara de emprestar ao filme a leveza desses hits. Mas, no fim das contas, Ayer é obrigado a recorrer a uma certa angústia forçada (como na cena em que o Pistoleiro observa um manequim criança na vitrine de uma loja de departamentos) para humanizar um filme com um monte de personagens – e essa angústia significa mulheres servindo como acessórios para retratar a dor masculina.

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Clay Enos / Warner Bros.

Margot Robbie e Jared Leto em Esquadrão Suicida.

O que nos traz de volta a Harley Quinn, cujo arco dramático, ou o que se passa por isso, é basicamente composto de lembranças perturbadas do seu tempo com o Coringa, na esperança de reencontrá-lo. A descrição desse relacionamento problemático é a coisa mais ousada do filme. Harley se transforma na parceira perfeita e num adereço para seu amado maquiavélico, abrindo mão da sanidade, da vida e da aparência para estar com ele, colocando sua existência em perigo só para provar sua devoção. É uma versão depravada de um amor louco, ou pelo menos deveria ser assim do ponto de vista pervertido de Harley – mas o filme parece mais apaixonado com o Coringa cheio de tiques interpretado por Leto (uma performance cheia de hype mas que não aparece tanto tempo na tela). É difícil distinguir entre o olhar apaixonado de Harley e o do próprio filme.

“Durmo onde quiser, quando quiser e com quem quiser”, diz ela para um guarda no começo do filme, uma declaração que contradiz as jaulas mentais em físicas nas quais ela se encontra, lambendo as grandes e insistindo que está no controle, apesar de o papel de destaque ser apenas o comercial de uma vilã de filmes futuros. Harley Quinn deveria ser o coração escuro de "Esquadrão Suicida". Em vez disso, fizeram dela uma boneca toda errada, que mais parece uma inspiração para punheteiros.

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