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"Dividir o mundo entre honrados e corruptos é tentador, mas não ajuda a superar crises", diz Laerte

A cartunista fala sobre a evolução artística de seu trabalho e a mudança de gênero, que foi registrada em um documentário que estreia nesta sexta (19).

O trabalho da cartunista Laerte Coutinho, 65, é lido por milhões de pessoas todos os dias nas redes sociais — o desenho que ela fez para retratar o depoimento de Lula ao juiz Sergio Moro, por exemplo, foi compartilhado 19 mil vezes no Facebook.

A audiência também pode ser compreendida sob a ótica da briga política que ocorre no Brasil, dividida basicamente em dois lados. "É uma visão que viciosamente é retomada, em contextos variados", diz a cartunista ao BuzzFeed Brasil.

"Mas também há uma esperança histórica, da qual o modo como eu vejo as coisas faz parte, que é uma certa maturidade na qual eu aposto muito", ela continua. "O modo simplório e sumário de ver as coisas é uma tentação permanente."

Na última década, Laerte passou por transformações pessoais e profissionais. Em lugar de tirinhas e charges políticas, expressões artísticas mais livres. Saíram as roupas masculinas e vieram a público as saias e a maquiagem de uma senhora bem vestida.

"Minha vida não é uma expressão profissional", afirma a cartunista. "E nem vice-versa. São coisas combinadas, o que é meio inevitável."

A cartunista transgênero teve sua jornada pessoal registrada no documentário "Laerte-se", dirigido por Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum e produzido pela Tru3Lab, que estreou no festival É Tudo Verdade e chega à Netflix nesta sexta-feira (19).

Leia abaixo a entrevista com Laerte, Lygia e Eliane.

BuzzFeed Brasil — Você considera o seu trabalho, hoje, mais engajado politicamente do que já foi um dia?

Laerte Coutinho — Não sei dizer. O que interessa pra mim é a dimensão política que existe em qualquer uma das histórias ou das situações em que eu trabalho. Acaba sendo um modo de ver as coisas que contém a minha dose de politização. Dificilmente eu vou abordar alguma coisa que não tenha essa forma de ver.

Em várias ocasiões, tanto no filme como em entrevistas, você disse que um dos motivos que a levou a trocar a charge pelas tirinhas, no final dos anos 70, foi que "acabou a simplicidade, o maniqueísmo, a divisão do mundo entre mocinhos e bandidos". O mundo era mais maniqueísta?

LC — Não era o mundo só, eu também, eu também. Eu tinha uma maturidade naquela época que me levava a entender a realidade assim, tinha os do bem e tinha os do mal. Tinha a ditadura, os capitalistas sujos, os militares violentos e tinha os do bem, que era a sociedade que queria a volta da democracia.

O tempo leva a gente a ver as coisas com mais complexidade, com mais profundidade, e entender todas essas nuances. Mas o modo de ter respostas para essas situações é tão mais produtivo quanto mais fundo a gente consegue pensar numa realidade e entender quais são as motivações.

Essa visão de mundo maniqueísta voltou a ser predominante no Brasil?

LC — É uma visão que viciosamente é retomada, em contextos variados. Acho que no Brasil hoje, sim, tem essa visão presente. Mas também há uma esperança histórica, da qual o modo como eu vejo as coisas faz parte, que é uma certa maturidade na qual eu aposto muito (risos). Pra gente conseguir superar esse momento e produzir uma saída que seja interessante para o país.

O modo simplório e sumário de ver as coisas é uma tentação permanente. Existem as pessoas honradas, e existem as pessoas corruptas; existem as pessoas que são delinquentes de esquerda, e existem as pessoas que são delinquentes de direita. Tem uma maneira mais produtiva de ver as coisas, mas é uma maneira mais difícil. Em momentos de grande tensão e muita densidade emocional dificilmente você consegue uma visão mais clara.

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Assista ao trailer de "Laerte-se".

Quanto tempo o documentário levou para ser produzido?

Eliane Brum — A gente queria buscar uma outra nudez, e a gente tinha que entender onde estava essa nudez, e a gente percebeu então que a questão era a casa. O documentário iria acontecer quando a Laerte aceitasse que a gente entrasse na sua casa. Então, esse começo entre a primeira entrevista e entrar na casa da Laerte foi quase um ano, entre 2013 e 2014.

LC — A dificuldade foi topar fazer um filme onde o foco fosse eu mesma. Foi meio constrangedor, meio aterrorizante, não sei.

Artistas de maneira geral têm dificuldade em falar sobre assuntos que não sejam o próprio trabalho?

LC — Não sei dizer. A minha dificuldade é em falar da minha pessoa, falo do meu trabalho com facilidade.

Lygia Barbosa da Silva — A gente criou uma relação que gerou a possibilidade dessa conversa legal, aberta.

EB — A primeira entrevista foram muitas horas, ela estava muito inteira naquela conversa. Acho que teve uma abertura pra gente, uma confiança que a gente agradece muito.

LC — Ela é uma repórter com uma pegada de terapeuta. Então, em alguns momentos a conversa beira o sotaque da análise.

Como o trecho do filme em que vocês discutem o que é "corpo perfeito"?

LBS — Acho que não é só isso, tem também o outro lado, e nisso a Eliane é muito boa, que é a arte de escutar. Mais do que o tipo de pergunta a ser feita, obviamente elas são pontuais e relevantes, mas junto com isso é a arte de escutar. Sentar com a Laerte e prestar atenção no que ela está dizendo, não ficar influenciando respostas ou direções de respostas.

Você tem medo de que a mudança de gênero, de algum modo, faça com que as pessoas falem mais de você que do seu trabalho? Você temeu isso em algum momento?

LC — Não, não. Medo, não. As conversas sobre gênero me interessam muito, porque eu também estou meio no escuro. Eu tô fazendo um processo que não é claro, e em nenhum momento foi, então também é muito estranho. [Me interessa] um tipo de pergunta, a pergunta interessada, não a pergunta que quer te botar em clinch, que quer te botar em sinuca. Não esse tipo de pergunta. As perguntas interessadas me interessam.

Eu estou tranquila com o meu trabalho. Quando comecei a viver a transgeneridade, eu já tinha passado uma espécie de revolução na área gráfica que tinha sido uma grande transformação. Não atrapalhou, não.

O tema da liberdade, tanto a liberdade criativa quanto a liberdade de ser quem você é, foi algo que ocupou sua mente nos últimos anos?

LC — Sim, são coisas que se combinam. Do ponto de vista do meu trabalho, eu descobri que me interessa também essa situação de busca. Me interessou muito sair de um procedimento que para mim estava limitante, bloqueava o desejo que eu tinha pelo meu trabalho. Então quando eu deixei essa coisa de que precisa ter uma piada, eu deixei meu trabalho fluir numa direção mais interessante.

Agora, minha vida não é uma expressão profissional. E nem vice-versa. São coisas combinadas, o que é meio inevitável.

A maioria dos seus leitores hoje é de usuários de redes sociais, não necessariamente leitores de jornal. O trabalho é mais simples para cartunistas jovens atualmente do que era nos anos 70?

LC — Eu vou falar a minha opinião pessoal. Das pessoas que eu conheço, essas pessoas jovens ambicionam publicar em jornais e revistas de papel quase como um coroamento. Mas o público que essas pessoas têm em nível digital muitas vezes é mais do que alcançariam publicando em jornal. Eu falo pra eles: hoje, você pode ter mais público em uma semana do que eu demorei 20 anos pra ter (risos).

Era outra estratégia: tinha que fazer portfólio de papel, encher o saco dos editores de arte. Hoje em segundos você está publicando. Mas acho que ainda existe uma mítica do jornal de papel e ter espaço nesses lugares é considerado uma coisa especial.

Para você, feiras de zine como a Plana e a Tijuana são um modo que artistas menos conhecidos encontraram para publicar seus trabalhos impressos fugindo de meios tradicionais?

LC — Sim, porque a história da revolução tecnológica não vai eliminando coisas. Eu comprei um mimeógrafo! (Risos.) O que eu vou fazer com isso? Vou fazer zine, sabe? (Risos.) Então, a produção artesanal não abandona essas profissões em momento algum, porque é muito importante manter esse ego, assim. Acho que pra qualquer pessoa. Pra pessoas do meu recorte histórico, é importantíssimo. Mas acho que para pessoas jovens também: desenhar, segurar as coisas — a massa, o papel, o lápis. É insubstituível isso.

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